Lemmy, o Último Grande Herói
Morre o vocalista, baixista e líder do Motörhead. E aqui eu recordo uma matéria que fiz com ele em 2011
Lemmy deu canseira. A entrevista estava prometida para às 16h no camarim da Via Funchal, em São Paulo. Ele chegou às 19h e resolveu nos atender às 22h. E se recusou a sair do local para posar para fotos. O que você vê nessa matéria é uma prova do talento de Luiz Maximiano, fotógrafo que se tornou meu parceiro fiel em viagens e reportagens especiais de VEJA.
No fundo, todos nós sabíamos que a morte de Lemmy era uma questão tempo. Ele era diabético, bebia demais, tinha tido uma relação longa e desgastante com anfetaminas e nos últimos tempos interrompia as apresentações do Motörhead porque não conseguia mais cantar as músicas da banda. O show do Motörhead no Monsters of Rock, em abril, foi cancelado após um piriri de mr. Kilmister. Da minha parte, me orgulho de ter assistido a primeira apresentação deles no país, ainda com Philthy Animal Taylor na bateria, e performances no Olympia e no Via Funchal. Abaixo, a matéria publicada em VEJA em abril de 2011.
Um fã do trio inglês Motörhead ouvido no documentário Lemmy (Estados Unidos, 2010) diz que somente dois seres podem sobreviver à explosão de uma bomba atômica: Lemmy Kilmister e as baratas. Descontado o exagero de fã, Lemmy, vocalista e baixista do Motörhead, é de fato um sobrevivente. Foi ajudante de palco de Jimi Hendrix e se exercitou em gêneros musicais hoje defuntos, como o space rock (estilo que trazia longas passagens instrumentais e letras inspiradas em contos de ficção científica), com uma banda que teve nos anos 60, Hawkwind. Como é comum entre músicos de sua geração, esse pioneiro do rock pesado abusou de bebidas e aditivos químicos – e com um agravante: ele é diabético. Mas ainda hoje, aos 65 anos, é capaz de cantar e tocar por uma hora e meia de show, num volume insuportável até para os padrões do heavy metal. Graças à resistência, pôde assistir ao renascimento do culto à sua banda e à sua persona de padrinho do rock pesado, consagrada no documentário que leva seu nome, dirigido por Greg Olliver e Wes Orshoski (Lemmy será exibido nesta semana em São Paulo, no In-Edit, festival dedicado a documentários musicais). O Motörhead, que está lançando o disco The Wörld Is Yours, se tornou o grupo preferido de artistas formados no punk, como o baterista e guitarrista Dave Grohl, do Foo Fighters. “Nada mau para um velho roqueiro, não?”, disse o músico a VEJA.
Ian Fraiser Kilmister nasceu em Stoke-on-Trent, cidade conhecida pela cerâmica e por ser o berço de duas outras personalidades do pop – o guitarrista Slash e o cantor Robbie Williams. Como boa parte dos jovens nascidos no imediato pós-guerra, Lemmy encantou-se com o rock’n’roll. Teve a oportunidade de assistir a shows dos Beatles e dos Rolling Stones, que então davam seus primeiros passos no showbiz. “Naquele tempo, os Beatles eram os malvados e os Stones, os filhinhos de mamãe”, lembra na autobiografia White Line Fever. Lemmy testemunhou momentos de fúria de John Lennon: viu o beatle descer do palco para esmurrar um espectador que o chamara de gay. Ajudante de palco de Hendrix, Lemmy lembra com carinho da generosidade do legendário guitarrista – generosidade, aliás, que não era só musical: “Jimi fazia sucesso entre as mulheres. Era capaz de agradar a cinco fãs numa única noite. E sempre sobrava uma para sair conosco”.
A grande criação do baixista foi o Motörhead. Surgido em 1975 sob vaias quase unânimes da crítica especializada, o trio mudou o panorama do heavy metal ao combinar o som alto e pesado com a rapidez e a agressividade do punk rock – o que o transformou em objeto de adoração por ambas as tribos. Uma das lendas em torno do Motörhead é a de que Lemmy teria mandado um dos guitarristas embora porque ele insistia em se apresentar de calçãozinho curto – o que destoava do visual de couro do grupo. Lemmy desmente: “Não tenho nada contra shorts. O problema é que ele bebia demais, até para os padrões do Motörhead”. Devia beber muito, mesmo.
As verrugas monstruosas e o bigodão de bandido de faroeste de Lemmy escondem um sujeito pacífico. “Quando eu o chamei para um projeto de rock pesado, pensei que ele chegaria num carro com formato de caixão. Mas Lemmy é tranquilo”, lembra Dave Grohl. Lemmy é assíduo em todos os compromissos de sua banda. Admite o uso de drogas, mas não faz apologia delas: “Não sou exemplo para ninguém”, diz. “Ele adora uísque e Coca-Cola. Mas nunca bebe até cair”, diz o diretor Wes Orshoski, que passou três anos na estrada com o Motörhead. Mais controverso é o gosto do cantor pela parafernália nazista: ele costuma comprar capacetes, adagas e armas alemãs da II Guerra. Garante, porém, que os motivos são apenas estéticos, e que não tem simpatia pela ideologia nazista. “Sou cabeludo, como carne, bebo e fumo. Hitler era vegetariano, tinha cabelo curto, não bebia nem fumava. E era maluco”, compara.
O Motörhead hoje está presente na trilha de games como o Guitar Hero, popular entre a garotada que nasceu quando Lemmy já contava mais de três décadas de carreira. O roqueiro também atua no jogo Brutal Legend, ao lado de Ozzy Osbourne e do ator Jack Black. “Nem sei como é o jogo, apenas coloquei minha voz”, diz. A nova ascensão do Motörhead coincide com a volta da popularidade do metal. “Nos anos 90, quando o grunge era popular entre os jovens, era pecado você dizer que curtia rock pesado”, lembra Orshoski. Daqui a cinco meses, o Motörhead – que fez shows em São Paulo e Florianópolis na semana passada – volta ao Brasil para participar da quarta edição do Rock in Rio. Dividirá o palco com o Metallica (cujos membros, aliás, veneram o grupo de Lemmy) e com atrocidades como a banda paulistana Glória. Espera-se, de antemão, que seja um dos melhores shows do festival. “Ninguém arrasa no palco como nós. É o que eu sei fazer de melhor e o que sempre farei”, diz Lemmy. Pelo menos até as baratas tomarem conta do planeta.