Vamos descontinuar a descontinuação?
“Caro Sérgio: ouvi, creio que há uns 20 anos, uma palavra que me marcou. Fui à procura de um perfume e a vendedora me disse que a fabricação havia sido descontinuada. Nunca tinha ouvido esta palavra até então. Desde o primeiro momento achei que soaria muito melhor se ela tivesse dito que aquele perfume não […]
“Caro Sérgio: ouvi, creio que há uns 20 anos, uma palavra que me marcou. Fui à procura de um perfume e a vendedora me disse que a fabricação havia sido descontinuada. Nunca tinha ouvido esta palavra até então. Desde o primeiro momento achei que soaria muito melhor se ela tivesse dito que aquele perfume não era mais fabricado. Ou coisa do tipo. Acontece que nos últimos tempos voltei a ouvir o bendito verbo. Soa-me tão pernóstico. Parece um eufemismo para não dizer que ‘tal produto não existe mais’. Qual sua opinião?” (Luis Cesar Voytena)
Estou com Luis Cesar: o verbo descontinuar também me incomoda com seu espírito despudoradamente eufemístico. Nada contra eufemismos em si. Eles têm o seu lugar na língua e alguns são indispensáveis no trato social. Como já escrevi uma vez em outras paragens, gosto de imaginar o momento em que o primeiro homem primitivo, criador anônimo do eufemismo, preferiu não comentar o caráter imperativo de seus movimentos intestinais e disse apenas: “Vou dar um pulo ali na moita”. Palmas para ele.
No entanto, eufemismos descarados demais podem sair pela culatra quando tentam dourar com palavras uma pílula amarga, jogando contra a transparência e correndo o risco de dar ao receptor da mensagem uma impressão de má-fé. O exemplo clássico é o “crescimento negativo” que alguns economistas tanto apreciam e que na verdade quer dizer “decréscimo, diminuição, queda, encolhimento”. A descontinuação (na fabricação) de um produto – ou seja, a interrupção, a suspensão, o fim – é outro, a meu ver.
Não se trata de erro, essa categoria que muita gente, ingenuamente, considera o único fator decisivo em questões de língua. O verbo descontinuar e o substantivo descontinuação frequentam os melhores dicionários. Criações do século XX, têm como precursor o adjetivo descontínuo, um termo mais antigo (registrado desde 1881), que no entanto nasceu com sentido diferente: o de algo que é intermitente, que se desenrola com falhas, soluços, lacunas.
Percebe-se aí, justamente, o coração do eufemismo: dizer que algo foi descontinuado não deixa muito claro se aquilo acabou para sempre ou se, quem sabe, está só descansando e pode ressurgir a qualquer momento. Alguém duvida de que o perfume procurado por Luis Cesar vinte anos atrás nunca mais apareceu nas prateleiras?
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