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Todos a bordo

O drama do Diamond Princess está aí, à disposição dos Thomas Mann ou Camus de hoje

Por Roberto Pompeu de Toledo Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 mar 2020, 10h50 - Publicado em 28 fev 2020, 06h00

No penúltimo dia do cruzeiro de duas semanas do navio Diamond Princess o capitão avisou, pelo sistema de som, que um passageiro desembarcado nove dias antes havia testado positivo para o novo coronavírus. Vida que segue. O jantar esteve animado como sempre, naquela noite, e depois houve concorrido público para o show no teatro com 700 lugares e aglomerações nos bares e nas pistas de dança. Uma minuciosa reconstituição do ambiente a bordo, feita pela jornalista Motoko Rich, do The New York Times, mostra que o Diamond Princess viveu, naquelas primeiras horas, seu momento de Titanic. Neste novo caso o navio não afundou. Mas foi cenário do mais dramático episódio, por enquanto, da crise do coronavírus. No dia seguinte, com a embarcação já atracada no Porto de Yokohama, os 2 666 passageiros souberam que não desembarcariam. Mais um dia, e o capitão informou que deveriam observar, trancados em suas cabines, uma quarentena de catorze dias.

O caso do Diamond Princess é rico no plano dos fatos e no dos simbolismos que sugere. A alta literatura do século XX produziu duas obras-­primas, Morte em Veneza, de Thomas Mann, e A Peste, de Albert Camus, que abordam surtos de males devastadores. Em Morte em Veneza indiscrições apenas sussurradas começam a romper o silêncio em torno dos primeiros casos de cólera ocorridos na cidade; a peste e a paixão proibida do escritor Gustav Aschem­bach por um menino de 14 anos, encarnação da pureza e da beleza num cenário de podridão, levam-no à morte. Em A Peste o sinal de que algo sinistro se aproxima é dado pelos ratos que passam a aflorar dos subterrâneos para morrer à luz do sol, nas ruas de Oran, Argélia. Nos dois romances a ação ocorre em ambientes circunscritos, próprios tanto para um foco fechado na miudeza dos dramas individuais quanto para as metáforas de alcance universal. Um navio oferece um ambiente mais circunscrito ainda. O drama do Diamond Princess está aí, à disposição dos Thomas Mann ou Camus de hoje, se é que existem.

“O caso do Diamond Princess é rico no plano dos fatos e no dos simbolismos que sugere”

Ao se encerrar a quarentena, o navio apresentava, somados os passageiros e os tripulantes, 634 infectados e dois mortos. O livro de Camus tem como heróis da história o médico dr. Rieux e o punhado de voluntários de que se cercou, no combate à propagação do mal e no socorro aos doentes. Heróis do Diamond Princess foram os 1 045 tripulantes. Três vezes por dia eles entregavam a comida, de cabine em cabine; os passageiros, ao recebê-la, abriam a porta com o rosto coberto por máscara. Também levavam trocas de lençóis e toalhas, recolhiam roupas para lavar e vigiavam os corredores, para assegurar-se de que os passageiros permaneciam nas cabines, segundo a reportagem do New York Times. Faziam isso tudo tendo de continuar a partilhar suas cabines, nos porões do navio, com colegas infectados.

Pode-se arriscar, em meio à complexidade de sentidos de Morte em Veneza, que um deles seria o de uma Europa doente, a caminho da Grande Guerra (o livro é de 1912). Outra das obras-primas do mesmo autor, A Montanha Mágica, ambientada num sanatório para tuberculosos na Suíça, desenvolveria, com mais vagar, e num cenário ainda mais circunscrito, argumento semelhante. Já A Peste, na visão de uma maioria de intérpretes, é uma alegoria à pestilência do nazismo. Publicado em 1947, na euforia da vitória sobre Hitler, o livro termina em igual euforia — a dos habitantes de Oran pelo fim da peste. A alegria era geral, mas dela não partilhava o dr. Rieux. Escreve Camus:

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“Ele sabia (…) que o bacilo não morre nem desaparece jamais, que ele pode permanecer adormecido por dezenas de anos nos móveis e nas roupas, pode esperar pacientemente nos quartos, nos porões, nas malhas, nos lenços e na papelada, mas virá o dia no qual, para infelicidade e ensinamento dos homens, a peste despertará seus ratos e os enviará para morrer numa cidade feliz”.

Em certo momento um tripulante do Diamond Princess desabafou: “Para que isolamento? Estamos fechados numa caixa já infeccionada”. Com o avanço do coronavírus, a metáfora da caixa ameaça saltar do navio para uma cidade inteira, da cidade para um país, do país para a totalidade do globo. Para que isolamento?, perguntaríamos então. Mas a metáfora pode também saltar da peste em sentido literal para outra peste, a de um mundo infectado pelo avanço da violência, da xenofobia, do racismo, do machismo, do desprezo pelo meio ambiente e pelas minorias. Neste caso seríamos todos passageiros do Diamond Princess.

Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676

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