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Diogo Mainardi, um promotor de Sergipe e Silvio Romero

Na defesa incansável dos direitos do povo brasileiro, o Ministério Público já entrou com ações civis contra as novelas Sinhá Moça (Bahia) e Páginas da Vida (São Paulo), por exemplo. Atribuindo-se a tarefa de polícia de costumes — a versão nativa da polícia religiosa do Irã ou da Arábia Saudita —, decidiu agora processar as […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 22h38 - Publicado em 6 mar 2007, 17h53
Na defesa incansável dos direitos do povo brasileiro, o Ministério Público já entrou com ações civis contra as novelas Sinhá Moça (Bahia) e Páginas da Vida (São Paulo), por exemplo. Atribuindo-se a tarefa de polícia de costumes — a versão nativa da polícia religiosa do Irã ou da Arábia Saudita —, decidiu agora processar as pessoas por delito de opinião. O alvo da vez é Diogo Mainardi. O Ministério Público Federal, agora o do Sergipe, entrou com uma ação civil pública contra o colunista, acusando-o de preconceito e discriminação contra nordestinos, em especial os sergipanos, e por ofensas morais à cidade e ao povo de Cuiabá. Sim, isso mesmo: um procurador de Sergipe acusa Diogo de ter desrespeitado a população da capital do Mato Grosso…

O que Diogo escreveu ou disse de tão grave a ponto de o MP-SE gastar dinheiro do contribuinte com uma ação civil pública? O procurador da República Paulo Gustavo Guedes Fontes justifica:– na edição da revista Veja de 19 de janeiro de 2005, ao se referir ao então presidente da Petrobrás, José Eduardo Dutra, Diogo escreveu: “Dutra não tem passado empresarial. Fez carreira como sindicalista da CUT e senador do PT pelo estado de Sergipe. Não sei o que é pior (…)”.– no programa Manhattan Connection, em 9 de março de 2005, falando sobre Lula, fez a seguinte observação: “Ele não é pragmático. Ele é oportunista. O episódio do Pará agora é muito claro. Quer dizer, uma semana ele concede a exploração de madeira, na semana seguinte ele cria uma reserva florestal grande como Alagoas, Sergipe, sei lá eu… por essas bandas de onde eles vêm. Isso é oportunismo…”.– Na edição de Veja de 18 de maio de 2005, Diogo escreveu: “Minha maior ambição, hoje em dia, é jamais, em hipótese alguma, colocar os pés em Cuiabá”.

Indústria de ações civis
Diogo, eu e todo mundo — em especial, intelectuais nordestinos — vivemos descendo o porrete em São Paulo. Ou no Rio de Janeiro. Ou em Nova York. Ou em Paris. E ninguém acha que isso é feio ou discriminatório. Por que Sergipe ou Cuiabá não poderiam suportar uma crítica — se é que ela foi mesmo feita, coisa de que duvido? O procurador quer que Diogo, Abril e GNT paguem R$ 200 mil cada um a título de indenização por danos morais. É nisso que o MP gasta o seu dinheiro, leitor amigo.

Na enquete, faço uma brincadeira sugerindo que a obra de Monteiro Lobato deva ser reescrita para eliminar os traços de racismo. Tia Nastácia e Tio Barnabé fundariam um quilombo e empalariam Dona Benta. Evocando o mesmo Lobato, imagino o que o Ministério Público Federal, existisse à época, não faria com o seu Jeca Tatu — as cidades do Vale do Paraíba têm todo o direito de se “proteger” daquela crítica. Ou a que rigor não submeteria Os Sertões, de Euclides da Cunha, quando este afirma que a mestiçagem contribuiu para fazer os degenerados de Antonio Conselheiro.

É evidente que Diogo faz uma crítica que nada tem a ver com naturalidade, raça ou coisa parecida. Entendam bem: Sergipe não é o Sergipe geograficamente delimitado; Cuiabá não é a Cuiabá do mapa, e o Nordeste não é a região arbitrariamente definida por cientistas sociais. Assim como as “cidades mortas” de Monteiro Lobato não são aquelas geograficamente encontráveis no Vale do Paraíba (SP). “Aquele” Sergipe, “aquela” Cuiabá, “aquele Vale do Paraíba” estão em qualquer lugar. Podem estar entranhados em São Paulo, no Rio ou, à sua maneira, nos subúrbios de Paris. E por que não há ações civis públicas quando alguém critica, sei lá eu, o mau gosto, a caipirice ou o novo-riquismo paulistano? É simples: porque São Paulo não fica bem no papel de oprimido — só de opressor.

Pense rápido, leitor amigo: o empresário Albano Franco ou José Eduardo Dutra, ex-chefão da Petrobras, ambos sergipanos, têm mais coisas em comum com os pobres do Sergipe ou com os ricos de São Paulo, Rio (ou qualquer lugar do Brasil)? Um pobre nascido em Dois Córregos (SP) está mais próximo do paulista Antonio Ermírio do Moraes ou do carregador de malas do sergipano Dutra? O que é ser um “sergipano”, senhor procurador? O que é ser um “cuiabano”? Um rico de Cuiabá topa dividir um uisquinho com um carioca descolado ou prefere um sem-teto patrício? O que os une? Ademais, a menos que a Constituição seja abolida, qualquer um, entendo eu, é livre para não pôr os pés onde bem entender — sendo-lhe facultado, até onde sei, expressar essa determinação. Mais: também lhe é permitido odiar Sergipe, Cuiabá, São Paulo ou a casa-da-mãe-Joana.

O que mais me encanta é que o procurador Paulo Gustavo Guedes Fontes procurou um parecer técnico para embasar a sua ação. Anexou, acreditem, um “laudo antropológico” de autoria de Jorge Bruno Sales Souza, “antropólogo”. O especialista conclui que “fica patente a intenção do jornalista Diogo Mainardi de menosprezar as pessoas oriundas da região nordeste do país.” Não existe um curso de graduação para você ser um “antropólogo”. Ninguém se forma em antropologia na USP, PUC ou Universidade Federal do Sergipe. Trata-se de uma pós-graduação geralmente voltada para sociólogos. A especialização é, na verdade, um ramo da sociologia.

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O “laudo” faz supor que se trata de uma questão objetiva, não meramente de um achismo e de um valor (subjetivo, ideológico, parcial) de quem julga. No livro As Formas Elementares da Vida Religiosa, de 1917, Émile Durkheim já apontava a tendência de se “naturalizar” a ciência social. Vale dizer: o que era uma construção valorativa ambicionava o lugar de uma ciência natural. Nunca ouvi falar desse tal Jorge Bruno — se ele existisse para a antropologia que conta, duvido que eu o desconhecesse. Mas está lá, dando seu atestado, assim como o geômetra assevera, em consonância com a natureza, que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos.

Jorge Bruno é do Sergipe? Parece que o procurador Paulo Gustavo Guedes Fontes é mineiro. Não posso lhe pedir, então, que se inspire nos sergipanos Silvio Romero (1851-1914) ou Tobias Barreto (1939-1889). Os dois, diga-se, foram bastante influenciados pelo naturalismo do século 19. Romero atacou sem piedade os “degenerados” de Antonio Conselheiro, a que já me referi aqui. Só teve uma compreensão um pouco melhor do que lá aconteceu depois que Euclides explicou. A dupla sergipana não aceitava o sertão mental brasileiro, fosse ele do Sergipe, de São Paulo ou da Bahia.

Romero é um caso engraçado. O sergipano deveria ser processado ex post pelo Ministério Público. Estou aqui com o volume 5 de sua História da Literatura Brasileira (José Olympio, 1980). Quando quer se referir aos críticos que não teriam entendido direito Os Sertões, escreve a “crítica indígena” — entenda-se: primitiva. Eis o livro à minha frente, aberto na página 1511. Romero está descendo o sarrafo em Machado de Assis, de quem não gostava. Acusa o escritor de nem mesmo ser engraçado. E manda bala: “Nossa raça produz facilmente o cômico, que se não deve confundir com o humour”.

Ô sergipano preconceituoso esse Silvio Romero… Mandem queimar seus livros.

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