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A BOLA COMO METÁFORA

Sentei aqui para falar da não convocação de Neymar e Ganso. Mas acho que há algo mais rondando aqui a minha cachola. Na política, nas ciências, nas artes, no pensamento, a voz do povo não é a voz de Deus. Ao contrário até: o capeta costuma ser mais íntimo do alarido das ruas do que […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 15h19 - Publicado em 12 Maio 2010, 05h51

Sentei aqui para falar da não convocação de Neymar e Ganso. Mas acho que há algo mais rondando aqui a minha cachola.

Na política, nas ciências, nas artes, no pensamento, a voz do povo não é a voz de Deus. Ao contrário até: o capeta costuma ser mais íntimo do alarido das ruas do que o Altíssimo. Os grandes horrores da história foram perpetrados quase sempre sob o calor enfurecido da turba ou sob seu silêncio frio e cúmplice. Se “o povo” fosse um ente, teria uma longa lista de crimes nas costas. Mas não é. A democracia representativa é uma grande invenção porque os lugares de mediação das demandas — o Legislativo, o Judiciário e o Executivo — geram eles próprios um novo saber, que é diferente do saber das ruas. Se as massas querem, para citar um exemplo, justiça imediata — de que o linchamento é expressão máxima —, o Poder instituído tem de dizer “não” porque esse imediatismo traz consigo o risco de degeneração do sistema e incentiva um voluntarismo que exclui o direito de defesa. E o direito de defesa, mais do que a punição imediata, resguarda a vontade coletiva; nesse caso, tirá-lo daquele que foi condenado sem processo corresponde a tirá-lo de todos os indivíduos desde que a maioria assim o decida.

Se é assim em tantos setores da vida, por que seria diferente com o futebol? Por que o técnico Dunga deveria dar ouvidos à voz rouca das ruas, que não conhece os mistérios táticos de um time com sete volantes (!), e convocar Neymar e Ganso? A exemplo do que o vulgo sabe sobre política, ciências, artes ou pensamento, pode ser que a voz rouca das ruas esteja entusiasmada com o erro, quando a razão estaria com a segura prudência de Dunga, que há tanto tempo vem testando a sua equipe. Nessa perspectiva, não convocar os meninos seria demonstração maior de coragem do que convocar. A esmagadora maioria dos brasileiros é composta de torcedores que se comportam como técnicos, mas o fato é que não são técnicos. Fiquem calmos aí que chego ao ponto — eu acho…

Tendo, por temperamento e por experiência, a ter mais simpatia, como diria Musil, pelas idéias “magras e severas” do que pela exuberância carnavalesca. O excesso de entusiasmo, o frenesi juvenil, o nervosismo encantado, tudo isso costuma ser um atalho muito eficiente para o desastre. Até na economia é assim, não é? Momentos de grande expansão e euforia quase sempre escondem uma bolha, que acaba estourando e fazendo um monte de vítimas. Já a severidade costuma ser previdente. Alguém me disse certa feita que eu estaria mais talhado para o protestantismo do que para o catolicismo. Entendo a razão da observação. Tenho um lado bem… calvinista! Na peça Júlio César, de Shakespeare, há uma passagem curiosa. Antes de seu trágico fim, César havia dito a Marco Antônio: “Quero homens gordos em torno de mim, homens de cara lustrosa e que durmam durante a noite. Ali está Cássio com o aspecto magro e esfaimado. Pensa demais. Tais homens são perigosos”. A magreza silenciosa, soturna e ensimesmada aparece associada à conspiração porque seria indicativa do pensamento.

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Eu poderia avançar ainda um tanto. As idéias magras e severas compõem com mais propriedade a coreografia ascética do conservadorismo, enquanto variadas formas de populismo, mesmo o revolucionário, se ocupam da economia dos sentimentos; os fascismos são sempre muito “emocionados” — César, a propósito, era um populista. O nosso Lula, para ficar na prata da casa, trata com desdém os intelectuais, apesar do fascínio que ele desperta na categoria…

Tentei ontem, enquanto Dunga falava, encontrá-lo nessas minhas considerações sobre os erros do povo e as, vá lá, paixões um tanto calvinistas… Ocorre que, francamente, não entendi boa parte do que ele falou. Se tivesse se expressado em javanês, talvez tivesse sido mais claro. Desandou, num dado momento, a falar sobre as seleções da Polônia, da Ucrânia, placas de propaganda… Temi que estivesse entrando em surto. Parece que o sentido geral foi mais ou menos este: “Tenho razões para escolher esses jogadores e não chamar Neymar e Ganso, como vocês estão pedindo, porque este é o grupo que me obedece”. Então tá.

Não! Dunga não era o bom conservador que protegia as instituições das paixões irracionais, resguardando o valor da moderação. Ganso e Neymar não deveriam estar entre os convocados porque a voz do povo é a voz de Deus — não é — ou porque, afinal, “o futebol precisa de um pouco de alegria e graça”, como se lê, às vezes, aqui e ali. Deixem isso para os humoristas. Eu os queria lá não por causa de suas dancinhas, de sua irreverência, do seu suingue, do apelo à nossa supostamente natural manemolência. Eu quero que todos esses chavões da brasilidade se danem!

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Paulo Henrique Ganso deveria estar na Seleção porque, no grupo de Dunga, ninguém entende de geometria mais do que ele, e há reiteradas demonstrações disso: um jogo, dois, três, quatro… dez. Se o técnico não tem o que fazer com isso, então Dunga é que teria de ser desconvocado. Na entrevista, ele parecia meio irritadinho, um tanto neurastênico.  Eu não queria Neymar porque, às vezes, ele é um tanto malcriado, mas porque as idéias magras e severas se ocupam da eficiência — aquela que ele vem demonstrando de maneira inequívoca em campo. Não incluí-lo nem mesmo na lista dos sete não é manifestação de rigor e de apego a um esquema tático: é birra, é ressentimento, é burrice. É MEDO!!!

Pode-se perder uma Copa do Mundo com um time brilhante e um futebol de encher os olhos, como em 1982. Pode-se ganhar com um desempenho medíocre, como em 1994, no Tetra conquistado por Romário. E não há lógica que prove que o brilhantismo conduz à derrota, e a mediocridade, à vitória. O maior jogador de todos os tempos do futebol é o imponderável. No basquete e no vôlei, jogos de placares alargados, é muito difícil, quase impossível, o melhor perder. No futebol, é mais do que possível: é freqüente. Ter os melhores em campo ou o time mais bem-treinado não é garantia de nada. Sei lá se o Brasil perde ou ganha. Mas é certo que deveria perder ou ganhar com Neymar e, mais do que ele, Ganso.

Nesse jeito Dunga de ser, o excesso de talento parece se confundir com falta de humildade e companheirismo. Isso nada tem de prudente, severo ou conservador. É apenas burro, ranzinza e reacionário. Ganhe ou perca, perde-se sempre.

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