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Por Coluna
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Um governo em cuecas (por Daniel Aarão Reis)

Um governo paranoico, que será capaz de tudo para evitar ou impedir o pleno funcionamento da democracia

Por Daniel Aarão Reis
Atualizado em 30 jul 2020, 18h52 - Publicado em 13 jun 2020, 09h00

Disse o mais nervoso: “perseguem a mim e a minha família”. Ecoou um segundo: “tô levando bordoada e correndo risco… podemos perder este país… nenhum de nós vai se dar bem se perdermos o país”. Uma terceira voz acompanhou: “nossos valores estão sob risco… em 30 anos, trata-se da maior violação dos direitos humanos”. Um mais velho, cabelos brancos, de quem se poderia esperar mais serenidade, não ficou atrás: “somos diferentes deles, por valores… é tiro, porrada e bomba… botamos a granada no bolso do inimigo… não vamos perder o rumo, não podemos perder o rumo”. Reclamou um quinto dos controles: “o tribunal… é uma usina de terror… se faz alguma coisa — tá arriscado a ir para a cadeia”. “É que a mídia é enviesada, joga medo”, completou mais um. “Eu matava ou morria… acabo na cadeia”, exclamou um outro. O líder da reunião fechou a rodada: “querem a nossa hemorroida e a nossa liberdade, que vocês saiam da toca, que se exponham, não podem deixar que eu leve porrada sozinho, que o povo se arme…” e exclamou, épico: “um povo armado jamais será escravizado”.

Parecia uma reunião de alguma organização política clandestina, prestes a ser destruída por forças poderosas. Nada disso, era o governo de uma república por nome Brasil que fazia uma reunião de ministros de Estado para discutir um plano de desenvolvimento. Aconteceu há menos de dois meses, e a reunião, secreta, acabou divulgada pelos meios de comunicação.

Para os historiadores e demais dedicados às Ciências Humanas, um maná, caído do céu. Acessar um documento deste tipo depois de 40 ou 50 anos é uma raridade. Em dois meses? Não há precedentes na história. Transcrição e autenticidade asseguradas por peritos e controlada pela Justiça. As pessoas pronunciando-se com franqueza desembestada e não para o distinto público. Por mais que se dê um desconto, pois estavam entre eles, e não seriam capazes de dizer o que disseram em público. E um outro desconto para a venerável instituição do puxa-saquismo, visível na competição para ver quem era o mais agressivo e o mais cafajeste (aspectos enaltecidos pelo chefe), estavam ali os que governam o país, sem meias-tintas, uma transparência absoluta, quase desumana. Expostos. Expondo-se.

Enquanto a sociedade move-se preocupada face aos sinais de um processo autoritário em curso, a democracia em risco, as instituições balançando, ameaçadas pela intolerância dos governantes. Num contexto de manifestos que se divulgam nas mídias, congregando milhares de assinaturas em defesa das liberdades e de passeatas que já se esboçam, prometendo resistência a aventuras desejosas de reinstaurar ditaduras no país, a nação descobre, pasma, que são eles que se sentem cercados, ameaçados. São eles que se acham imprensados, vigiados, tolhidos, mal informados, perigando irem para a cadeia, para o trabalho compulsório, para o exílio, para a morte.

Estranhos e perigosos governantes: perseguem e se julgam perseguidos. Querem controlar e temem ser controlados. Reprimir e se acham reprimidos. Desejam prender e arrebentar, como dizia em época não tão remota, um esquecido general, porém, se declaram na iminência de serem presos e arrebentados. Imaginam matar, contudo, deliram como ameaçados de morte. Cercam e se sentem cercados.

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A isso se chama paranoia em psicanálise. E não há como escapar da assombrosa conclusão de que estamos sob regência de um governo paranoico, que será capaz de tudo para evitar ou impedir o pleno funcionamento da democracia neste país.

Em meados dos anos 1950, Raimundo Magalhães Júnior lançou um livro divertido: “O império em chinelos”. Um apanhado das críticas ferinas desferidas pelos humoristas e caricaturistas da época. Na capa, o imperador Pedro II caía de bunda do trono, as pernas para o alto. Um livro bem-humorado.

Na reunião de 22 de abril passado, o governo brasileiro apareceu em cuecas, não em chinelos, e o quadro que se desenhou não é nem um pouco engraçado. É crítico e assustador e requer cuidado, decisão e coragem, mas… vai passar.

Daniel Aarão Reis é historiador. Artigo transcrito do jornal O Globo

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