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Por Coluna
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Outra vez, “O ovo da serpente”? (por Cláudio Laks Eizirik)

Negação dos valores humanos e da ética

Por Cláudio Laks Eizirik
Atualizado em 30 jul 2020, 18h53 - Publicado em 4 jun 2020, 11h00

Em março de 2018, depois de participar do Congresso Europeu de Psicanálise, em Varsóvia, onde o tema do Holocausto foi enfrentado corajosamente, do ponto de vista humano e psicanalítico, fomos a Cracóvia e passamos um dia em Auschwitz.

Nada do que se lê, ouve, vê em filmes, documentários ou séries, compara-se ao que acontece nessa visita ao maior cemitério ao ar livre da Europa. Tudo em Auschwitz é horrível: o portão de entrada, com a sinistra e perversa frase “O trabalho liberta”, as filas de visitantes, que lembram as filas de prisioneiros a caminho da morte, os edifícios sombrios de tijolo, cada cenário da degradação e da maldade humanas, as câmaras de gás, os barracões de madeira, o silêncio opressivo, os relatos mecânicos dos guias, as fotos e filmes das pessoas minutos antes de serem transformadas em cinzas, e principalmente o frio. Há um frio cortante, permanente, que nenhuma vestimenta, por mais quente que seja, é capaz de conter: o frio da morte.

Para Hanna Arendt (2005), que identificou a banalidade do mal, “os campos de concentração e de extermínio dos regimes totalitários servem de laboratório onde a crença fundamental do totalitarismo – tudo é possível – encontra-se comprovada. Os campos não se destinam apenas ao extermínio de pessoas e à degradação dos seres humanos: eles também servem à horrível experiência que consiste em eliminar a espontaneidade como expressão do comportamento humano e transformar a personalidade humana numa simples coisa”.

André Green (1988) destaca que o monstro frio e cruel da destrutividade se une às figuras mais tradicionais do mal; diz que o mal é insensível à dor do outro: ignora o sofrimento alheio e, ao contrário, busca aumentá-lo, mostrando assim suas origens narcísicas. Green considera o Holocausto a forma mais acabada e mais completa do mal, pois corresponde a um mal que nasce da desobjetalização, em razão da pulsão de morte. Assim, o sadismo impressiona menos que a eficácia de seu rendimento, e a crueldade parece menos terrível que o ardor pela ordem e pela limpeza no extermínio sistemático.

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Em suma, o nazismo, e tudo e todos que a ele se associam, é uma cruel negação dos valores humanos e da ética, dois pilares essenciais da democracia e da psicanálise.

Há poucos dias, Abraham Weintraub comparou uma operação da Polícia Federal contra alguns suspeitos de financiar manifestações contra a democracia e difundir fake news  à infame “Noite dos Cristais”.

A “Noite dos Cristais” foi um grande ataque organizado pelo governo nazista contra os judeus da Alemanha, em 9 de novembro de 1938, consistindo na destruição, quebra dos vidros, queima de lojas, sinagogas e outros estabelecimentos, com um número de mortos superior a mil e outras 30 mil pessoas presas e encaminhadas para os campos de concentração. Este evento é considerado o início formal das perseguições que levariam à morte 6 milhões de judeus e  milhões de outras pessoas pelo regime nazista.

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Logo após a manifestação do ministro, entidades e autoridades judaicas nacionais e internacionais protestaram de forma veemente contra tal comparação, que ofende a memória e a tragédia do povo judeu e de milhões de pessoas durante o Holocausto. Para mim, como para muitos outros brasileiros, tanto judeus como não judeus, que tenham um mínimo de noção histórica, ética e decência, esse tipo de utilização de episódios de tal magnitude em busca de justificativa para ações criminosas por pessoas ou instituições constitui uma afronta e uma indignidade inaceitáveis.

Vários membros do atual governo têm se manifestado ou utilizado o nazismo. Os exemplos vão do inacreditável à pura e simples mentira: dizer que o nazismo é um movimento de esquerda (Ernesto Araújo, Bolsonaro, 2018), usar trechos de discursos de Goebbels, ao som de Wagner (Roberto Alvim, 2020), comparar o uso do isolamento social como prevenção à contaminação pelo coronavírus com os campos de concentração (Ernesto Araújo, 2020), uso do infame lema  “O trabalho liberta“ (SECOM, 2020),  uso do leite numa Live, símbolo da pureza étnica e dos neonazistas e supremacias brancos (Bolsonaro, 2020). Tudo isto pode ser visto como a clara expressão da inspiração nazista e fascista para o atual governo. Mas há mais, a cada dia.

Na madrugada de domingo, 31 de maio, um grupo de pessoas com roupas pretas, máscaras de filmes de terror e tochas protestou em frente ao STF. Domingo pela manhã, montado num cavalo, Jair Bolsonaro participou de ato que pede intervenção militar e no STF.

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No mesmo dia, a manifestação do bravo Decano do STF, Ministro Celso de Mello, comparando o Brasil deste momento à Alemanha de Hitler e dizendo que os bolsonaristas querem instaurar uma abjeta ditadura. O Decano faz alusão ao filme de Ingmar Bergman, O Ovo da Serpente (1977), que retrata as origens da instalação do nazismo na Alemanha.

Ora, Adorno (2015), em seus Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, examinou alguns aspectos da propaganda fascista, destacando que costuma ser personalizada, glorificar a ação, a religião e o patriotismo, oferecer às massas a realização de seus desejos e, principalmente, apesar de toda sua lógica enviesada e distorções fantásticas, ser algo conscientemente planejado e organizado. O agitador fascista, diz Adorno, é usualmente um exímio vendedor de seus próprios defeitos psicológicos, visando uma identificação inconsciente de seus seguidores. É característico dos demagogos fascistas se vangloriar de terem sido heróis atléticos em sua juventude. Os típicos líderes fascistas são frequentemente chamados de histéricos, mas o fato é que atuam de forma vicária por seus ouvintes desarticulados, ao fazer e dizer o que estes gostariam, mas não conseguem ou não se atrevem a fazê-lo. Hitler, diz Adorno, foi aceito não apesar de suas esquisitices baratas, de sua entoação falsa e de suas palhaçadas, mas precisamente por causa delas.

Destaco, por fim, a noção de que a destrutividade e a agressividade são um fundamento psicológico do espírito fascista. Seus programas são abstratos e vagos, as satisfações espúrias e ilusórias, porque a promessa expressa pela oratória fascista nada mais é do que a própria destrutividade.

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Vivemos tempos sombrios e preocupantes. De minha parte, penso que toda essa série de alusões ao nazismo, bem como a sucessão de atos, bravatas, agressões a jornalistas e à imprensa, ameaças ao legislativo, ao STF, aos governadores e prefeitos, ao lado da mais absoluta indiferença à trágica realidade da pandemia que nos ameaça a todas e todos, encontram notável semelhança com as características descritas por Adorno sobre a forma de atuar dos regimes fascistas, e ao oportuno manifesto do Ministro Celso de Mello.

Estamos vivendo uma dupla e terrível ameaça. Por um lado, o horror da Covid-19, e a desmobilização pelo governo do ministério que o enfrentava com bravura, e os ataques aos governadores e prefeitos que lutam com os recursos de que dispõem. Por outro, o vírus do fascismo, que despudoradamente mostra mais, a cada dia, sua face sinistra e ameaçadora à democracia.

Há uma crescente mobilização nacional, por todos os meios disponíveis, e acima das diferenças partidárias, para defender nossa democracia e nossas instituições. Este é o momento em que todos(as) devemos erguer nossa voz em defesa dos valores humanos e éticos que estão sendo ostensivamente ameaçados, sem os quais corremos o risco de reviver os horrores do nazismo e do fascismo.

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*Psiquiatra e psicanalista, Cláudio Eizirik é ex-presidente da International Psychoanalytical Association (IPA) e membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, filiada à Federação Brasileira de Psicanálise.

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