O fim de outono em Paris parece seguir seu roteiro habitual: as árvores já perderam quase todas as suas folhas, as temperaturas andam próximas de zero grau, as ruas já ganharam luzes especiais para o Natal e os turistas não param de chegar. Um novo personagem, contudo, se prepara para entrar em cena na madrugada de quinta-feira (5): a greve nacional dos ferroviários, que promete paralisar o país em protesto contra a reforma da Previdência.
A paralisação é tema frequente nas conversas dos parisienses. Pelos transtornos que tende a causar no cotidiano de milhões de usuários do transporte público, com certeza. Mas também pelo que tem de polêmico. Prometida desde a campanha eleitoral que levou ao Palácio do Eliseu o presidente Emmanuel Macron, a reforma se destina a acabar com as aposentadorias especiais, como a dos ferroviários, e abrir caminho para um sistema universal.
Assim como no Brasil, o projeto de reforma nasce a partir da constatação de um grande déficit nas contas da Previdência. No caso da França, esse déficit está estimado entre 7,9 e 17,2 bilhões de euros em 2025. Algo como 0,3% e 0,7% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo estimativa do Conselho de Orientação das Reformas, elaborada a pedido do primeiro-ministro Edouard Philippe. Déficit que, segundo o governo, tem muito a ver com as aposentadorias especiais.
A reforma da Previdência tem o apoio de 76% dos franceses, como indica estimativa do instituto Ifop divulgada pelo Journal de Dimanche. Mas há um problema: 64% dos participantes da pesquisa disseram não confiar no governo de Macron e Philippe para levar adiante a reforma. Para completar a onda de más notícias para o governo, a greve convocada pelos ferroviários tem o apoio de 46% dos entrevistados, contra 33% de opositores e 21% de indiferentes.
Na verdade, a greve parece ser uma espécie de estuário de caudalosas insatisfações. Os próprios ferroviários já haviam demonstrado a sua força em novembro, ao paralisar a capital francesa por um dia. Os enfermeiros e os médicos também saíram às ruas no mês passado para protestar contra a crise nas emergências do sistema de saúde.
Há uma semana agricultores fecharam rodovias em protesto contra a política agrícola do governo. E os gilets jaunes celebraram há poucos dias o primeiro aniversário de seu movimento de protesto, que se alimenta principalmente do ressentimento de franceses do interior contra a elite parisiense.
Os ferroviários serão os protagonistas a partir desta quinta-feira. Pelo menos 90% dos trens e metrôs deverão permanecer parados. Eles não estarão sozinhos. Os sindicatos convocaram 900 mil professores a entrar em greve, e 40% das escolas deverão ficar de portas fechadas.
Policiais prometem promover o “fechamento simbólico” de delegacias. E os sindicatos do setor de energia também anunciam apoio à greve: 140 mil eletricitários e empregados da área de gás estão entre os que contam com regimes especiais de aposentadoria.
Se a greve entrou nas conversas de muitos parisienses, não é nem tanto pelo que ela pode provocar na própria quinta-feira. O temor é de uma greve longa e disseminada por diversos setores da economia, aí incluída a aviação – a Air France já anunciou o cancelamento de 30% de seus voos internos e admitiu a possibilidade de adiamento de voos internacionais. Ou seja, todo mundo já sabe como a greve vai começar, mas ninguém tem ideia de como e quando ela vai terminar.
Os parisienses temem uma repetição do que ocorreu em 1995, quando uma longa greve provocada igualmente pela resistência ao fim dos regimes especiais parou a cidade por diversos dias. Quem ia ao trabalho precisava andar vários quilômetros a pé. Agora, para evitar esse problema, muitos habitantes das maiores cidades do país estão em busca de bicicletas, novas e usadas.
Enquanto os franceses se preparam para driblar os efeitos da greve, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou um documento de apoio à reforma do sistema previdenciário francês. Segundo números divulgados ao jornal econômico Les Echos pelo responsável da organização para a questão da previdência, Hervé Boulhol, a relação entre a aposentadoria e o salário médio dos ativos na França é melhor que a média dos 36 países mais ricos do mundo.
Ainda segundo Boulhol, no momento em que se acelera o envelhecimento da população, a França está entre os países da OCDE em que os trabalhadores deixam mais cedo a vida ativa. Um francês trabalha em média até os 60,8 anos para se aposentar, quatro anos a menos que em outros países desenvolvidos.
Todos esses números estarão na mesa de negociações entre o governo e os sindicatos ao longo dos próximos meses. Se em 1995 o então presidente Jacques Chirac recuou de sua proposta após as greves, Macron até o momento sinaliza intenção de ir adiante. Ninguém imagina, porém, qual será o desfecho dessa queda de braço.
Marcos Magalhães é jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra). https://capitalpolitico.com/‘