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O Galo da Madrugada e o reino do pernambucarnaval

Há quem diga que, dez mil anos antes de Cristo, nossos ancestrais carnavalizaram ritos para espantar os demônios

Por Gustavo Krause
Atualizado em 30 jul 2020, 19h09 - Publicado em 16 fev 2020, 10h00

Há quem diga que, dez mil anos antes de Cristo, nossos ancestrais carnavalizaram ritos para espantar os demônios que ameaçavam as boas colheitas.

Qualquer que tenha sido origem, tempo ou espaço, a verdade é que o carnaval, a exemplo do futebol, foi abrasileirado. É uma produção cultural de gente mestiça, musical, malemolente. Transformou-se numa paixão nacional com essência e estética próprias.

Com efeito, a essência e a estética desta festa verde-amarela é sincrética e polimorfa; é pagã e cristã; mistura o profano com o sagrado; tem a alegria dos arlequins e a tristeza dos pierrôs; dança ao ritmo alucinante do frevo-de-rua e aos acordes plangentes do nostálgico frevo-de-bloco; ao tempo em que subverte as regras sociais, devota irrestrita obediência à liturgia das tradições; une traços de confronto social com irresistível pendor democrático tanto que, uma vez instaurada a efêmera monarquia momesca, integram-se pacificamente a “nobreza” e o “terceiro estado”, sob o dístico revolucionário “liberdade, igualdade e fraternidade”, dizendo melhor, no reinado da majestade Momo, todos são livres, iguais e irmãos.

Antes de chegar aos pagos brasileiros, o carnaval passou por um estágio de dominação lusitana com o nome de entrudo e o famoso “Zé Pereira” foi o apelido dado a um português chamado José Nogueira de Azevedo Paredes que, em 1846, fez uma barulhenta passeata na segunda-feira do período momesco, na cidade do Rio de Janeiro.

Por aqui, o entrudo e Zé Pereira foram tomando forma à nossa imagem e semelhança: a festa nasceu como uma concessão dos senhores aos escravos; dos patrões para empregados; da elite para a ralé.

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A simples concessão para o folguedo, logo, logo, foi sendo reelaborada, de baixo para cima, incorporando traços e costumes dos elementos formadores da cultura brasileira e fundindo ritmos, danças e gingados de tal forma que explodiu como um espetáculo belo e contagiante, sem similar no planeta Terra.

Em Pernambuco, particularmente no Recife e Olinda, sem qualquer ufanismo, a festa é um caso muito especial no mapa do carnaval brasileiro. Por aqui, continua sendo festa do povo e seu berço é a rua. Sua propagação se deu por meio de troças, blocos, associações recreativas; seu território cresceu e foi das ruas para os bairros e dos bairros tomou a cidade inteira; os salões dos clubes elegantes não resistiram à “ofegante epidemia” que se chama carnaval.

É verdade que, de muita coisa boa e bonita, resta, apenas, o registro da memória histórica. Também, pudera, a urbanização enlouquecida afetou (e para pior) as várias dimensões da convivência humana nas cidades desfiguradas.

É aí que entram em cena o bairro de São José e um punhado de almas que, faz quarenta e dois anos, resolveu resistir e vencer a guerra que mata a tradição e a identidade cultural da nossa gente.

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Sob o comando de Enéas Freire que, em 1978, 75 mascarados e uma orquestra de frevo saíram da rua Padre Floriano, Bairro de São José, ganhou as ruas do centro do Recife, mal os comerciantes abriam suas lojas. Uma surpresa alegre e afetiva. Nascia, assim, o Galo da Madrugada. Caiu no goto popular e tornou-se um fenômeno de massas. Toda a cidade canta e dança, vestida em belas e criativas fantasias. Famílias inteiras. O Galo ratificou a vocação carnavalesca do bairro de São José e transbordou para cidades brasileiras e estrangeiras. Este ano desfila em São Paulo, na terça 25.

A paixão à primeira vista dos “galistas” pioneiros transformou-se no amor incondicional de todos os sábados de carnaval. Tudo começa com um farto café regional para aguentar o tranco. As combinações etílico-gastronômicas são as mais estranhas possíveis: tapioca com cerveja, vodka com cuscuz, cachaça com caju e whisky com queijo de coalho.

Chegar bem cedo na concentração oferece ao folião um espetáculo deslumbrante: o Recife se espreguiçando; o bairro acordando; as pessoas chegando sozinhas ou em grupos, fantasiadas e dispostas a integrar uma população inteira que, durante horas, se entrega ao devaneio de uma vida que só conhece alegria.

O Galo da Madrugada é um fenômeno de resistência cultural, de explosão popular, de convivência pacífica e harmoniosa da massa humana com todas as diferenças, grandezas e misérias.

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Neste sentido, já ouvi muitos depoimentos sobre o Galo. Entretanto, o mais expressivo veio de famoso cineasta judeu que, ao contemplar a multidão incalculável, do alto do Edifício Trianon, disse, boquiaberto: “agora, eu acredito que a paz é possível”. De fato, ali estavam presentes todos os ingredientes da confusão: bebida, sensualidade, libertinagem, revogação de limites. No entanto, o congraçamento em nome da folia une mais do que separa as pessoas.

Isto tem uma explicação: o Galo da Madrugada é especial personagem de uma utopia chamada “O Reino do Pernambucarnaval” que assim pode ser descrito:

Território: “Recife, cidade lendária” e “Olinda, cidade eterna”.

Governo: monarquia absoluta exercida pela Rainha do Maracatu com poderes mágicos de fada-madrinha e de Santa. O Rei Momo é o bobo da corte.

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Constituição: “Art.1- Fica instituído o reino da alegria e decretada a folia, em todo o território do Pernambucarnaval, sob os acordes do Frevo e do Maracatu.

Art. 2- Esta constituição estará em vigor do sábado de Zé Pereira até a Quarta-Feira de Cinzas, revogados a tristeza, o mau humor, o pessimismo e o azar”.

Neste reino, não haverá saudades.
Todos estarão vivos,
“de braços para o alto/frevando sem parar”,
assim na terra como no céu.

As mulheres serão “morenas da cor de canela”,
“diabos louros com cara de gente”,
“mulatas da alma cor de anil”.
E todas terão “pele macia, carne de caju, saliva doce…”

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Os homens serão bons e pacíficos.
Sairão fantasiados de anjos,
dizendo a uma só voz:
“Olinda, quero cantar a ti esta canção”.

(O amor será livre, leve e louco).

Todos comerão o Pão que Deus amassou.
Beberão “bate-bate com doce”.
Provarão do vinho que Baco ofertou.
E a sobremesa será filhós.

À noite,
serão iluminadas as casas e as ruas
(em vez de lâmpadas)
por pedaços de lua.

“Na madrugada do terceiro dia”,
choverá um minuto de cinzas
para lembrar que somos pó
e que ao “Bacalhau na vara” retornaremos.

Depois, todos dormirão em paz.
Durante 361 dias, sonharão com “serpentinas partidas”,
até que “o Galo canta e anuncia
a madrugada de um novo dia”.

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda do governo Itamar 

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