Antes de o carnaval chegar (Por Marcos Magalhães)
Os próximos meses dirão se há ou não lugar para otimismo no combate à pandemia
A operação teria que ser rápida. As primeiras doses da vacina foram enviadas ao Rio de Janeiro em 31 de dezembro. Tudo teria que estar pronto antes de o carnaval chegar. Em apenas 12 dias, quatro milhões de cariocas – dos 4,8 milhões de habitantes da cidade naquele momento – já estavam vacinados.
O ano era 1975. A vacina era contra a meningite, que matava centenas de pessoas por dia havia vários meses, sob silêncio imposto pelo governo militar. Mas até a metade daquele ano 90 milhões de brasileiros já haviam sido vacinados. Mais de 70% da população. A epopeia é narrada em reportagem especial que acaba de ser publicada pelo jornal francês Le Monde.
“Eles fizeram tudo à brasileira, como se fosse uma festa”, relatou ao jornal Alain Mérieux, presidente da Fundação Mérieux, ligada ao laboratório de mesmo nome que fabricou as vacinas. “Era preciso concluir a vacinação antes do carnaval, pois o cancelamento da festa estava fora de questão, e as contaminações poderiam ser massivas”, recordou.
Logo em seguida viria um desafio ainda maior: São Paulo, com seus 10 milhões de habitantes. Centenas de postos de vacinação foram espalhados pela cidade, em escolas, igrejas e pontos de ônibus. Alto-falantes divulgavam por todos os lados o Samba da Vacinação, composto para a ocasião. Em cinco dias a população da cidade estava protegida.
Em poucos meses a vacinação se estendeu por todo o território nacional. Ao fim do primeiro semestre a epidemia desapareceu. Nunca mais voltou. O governo militar de então demorou a responder ao surgimento da doença e a escondeu enquanto foi possível.
O assunto era visto como de segurança nacional. A revista Veja publicou uma capa sob o título A epidemia da desinformação. Mas os números de vítimas não permitiam que a epidemia permanecesse longe das manchetes dos jornais. Sob pressão, ainda que tardiamente, o governo agiu. E os resultados vieram rápido.
Ousadia
A superação do surto de meningite foi fruto de uma ousadia. Em 1963, a Organização Mundial da Saúde (OMS) fez um apelo a laboratórios de todo o mundo pela busca de uma vacina contra a meningite, que atingia principalmente a África. Ou seja, uma doença de países pobres.
Naquele momento o único a se candidatar foi Charles Mérieux, então diretor do instituto e filho de seu fundador, Marcel Mérieux, que havia sido aluno de Louis Pasteur. Até então o instituto não tinha experiência no tema da meningite. Charles contratou então o médico militar Léon Lapeyssonnie, e em uma década a vacina foi desenvolvida.
O resultado das pesquisas foi publicado no boletim da OMS em 1974. Pouca gente na França notou. Mas a publicação chamou a atenção de Paulo de Almeida Machado, um obscuro ministro da Saúde que raramente era recebido em audiência pelo então presidente Ernesto Geisel.
Em 24 de agosto de 1975, Machado foi a Marcy-l´Étoile, perto de Lyon, para visitar o Instituto Mérieux, que até então havia fabricado no máximo algumas centenas de milhares de doses de vacinas. Os franceses não entenderam bem quando Machado disse a eles que precisava de 50 milhões de doses. O ministro teve que escrever o número em um maço de cigarros.
Refeitos do susto, os franceses levaram dois meses e meio para dar início à produção. A primeira remessa foi em 31 de dezembro. O primeiro desafio estava superado. Mas os brasileiros conseguiriam superar o próximo desafio, o da vacinação? “Francamente não se acreditava”, relatou ao Le Monde Jacques Berger, antigo diretor do instituto.
Outro tempo
Pois os brasileiros também responderam bem. Em primeiro lugar, encontraram a vacina certa que pouca gente conhecia. Depois, organizaram uma ampla campanha de vacinação por todo o país. E conseguiram vencer a epidemia.
Era mesmo um cenário muito diferente. Segundo relatos colhidos pela reportagem, houve inicialmente um acordo informal entre representantes do laboratório e do governo brasileiro. Nenhum contrato foi firmado de imediato. Mesmo assim, diretores e empregados chegaram a suspender férias para dar início à produção.
“Não se pode comparar, era outra época”, disse Alain Mérieux. “As regras sanitárias não eram as mesmas, as relações internacionais eram diferentes, e a indústria farmacêutica tinha outras prioridades além da rentabilidade”.
Os franceses ressaltaram como era importante para os brasileiros garantir o carnaval de 1975. O carnaval de 2021 já foi suspenso pela pandemia da Covid-19. As baterias ficaram em silêncio. Por enquanto, só se ouve o ritmo lento da vacinação.
Muita gente aposta na volta do carnaval em 2022. Mas há quem duvide. Em entrevista a O Globo, o neurocientista Miguel Nicolelis – que acaba de deixar a coordenação do Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a Covid-19 – alertou para o risco de mais um ano sem festas.
“O pessoal fala que daqui a um ano vai estar tudo certo, que em 2022 vai ter carnaval”, observou Nicolelis. “Do jeito que a carruagem está andando, a perda de vidas pode chegar ao dobro daqui a um ano”.
Os próximos meses dirão se há ou não lugar para otimismo no combate à pandemia.
Marcos Magalhães escreve no https://capitalpolitico.com/