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Paradoxo britânico: quase mil mortos por dia e pouco drama

O primeiro-ministro quase morreu, o número de vítimas diárias do coronavírus supera o da Itália e o abismo é o mesmo de todo mundo, mas não parece

Por Vilma Gryzinski 12 abr 2020, 15h09

Boris Johnson ressuscitou no Domingo de Páscoa.

De forma geral, a afirmação é acompanhada por risadinhas. Irônicas, em grande parte, ou um pouco aliviadas.

Além de receber alta do hospital onde, em certo momento, chegou a ter 50% de chances, para um lado ou para o outro, o primeiro-ministro fez um discurso digno, forte, inspirador.

Vai entender. Conseguiu tudo o que todo mundo, inclusive aliados, achavam que ele não conseguiria – passar credibilidade, imagem de estadista e otimismo num momento em que esta mercadoria não existe.

Atenção: não passou pela cabeça de ninguém (se passou, ficou lá dentro da imaginação dos construtores profissionais de imagem) apresentar o primeiro-ministro como um mártir.

Nada de drama, de gente chorando ou fazendo corrente na frente do hospital. Nada de boletins urgentes com repórteres ofegantes.

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Claro que ninguém deixou de notar a intensidade histórica de ter um chefe de governo derrubado pela doença que se tornou o mais desafio de todos os líderes da metade da humanidade trancafiada pelo coronavírus – e com poucas ideias otimistas sobre como sair dessa.

O trajeto surpreendentemente contido do primeiro-ministro que passou nove dias trancado em Downing Street, tentando controlar o incontrolável, depois mais três dias na UTI, reflete também a atitude geral em relação à epidemia.

A situação é pavorosa. A média diária de mortes estava batendo em quase mil, mais do que na Itália. No total, as vítimas passam de 10 mil, mas a curva está caminhando para algo muito, muito pior. Talvez uns 60 mil mortos, talvez mais.

Mas o ambiente, por assim dizer, é bem diferente dos três países europeus mais afetados, Itália, Espanha e França.

Ninguém precisa imprimir uma justificativa de circulação para sair de casa. Os casos de controle policial são praticamente anedóticos.

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Se exageram, pedem desculpas, como o policial de uma cidade do interior que tuitou sua satisfação por ver os supermercados em ordem, sem ninguém comprando produtos não-essenciais.

Um parque, o Victoria, que tinha sido fechado em Londres por excesso de gente sem noção, reabriu diante das reclamações.

Se alguém não entendeu, a polícia explica, a pé ou a cavalo: pode caminhar, correr, levar o cachorro para dar uma volta. Não pode sentar ou deitar na grama, fazer churrasco, encher a cara ou outros comportamentos típicos dos convenientemente chamados de “covidiots”.

Em muitas ruas de Londres, o movimento de pedestres e ciclistas – estes mal disfarçando a alegria de ter tanto espaço – contrasta com as cidades totalmente esvaziadas da Itália ou da Espanha.

Os dias de temperaturas inesperadamente mais altas trouxeram para a luz do sol formidáveis coleções de tatuagens e de Mercedes conversíveis.

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As sirenes das ambulâncias são audivelmente frequentes, mas não muito mais do que isso.

Cenas de doentes na UTI, de corpos acumulados, de enterros solitários, com um ou dois parentes se despedindo de longe?

Nem pensar. Só aparecem nas reportagens de televisão que ainda mostram o drama em Bergamo, como se ele não estivesse se repetindo exatamente nesse momento nos hospitais e morgues de Londres.

O senso, tão britânico, de privacidade cria um clima único.

A campanha entusiasmada dos canais de televisão para que todos aplaudam, de casa, nas quintas à noite, os profissionais do sistema de saúde tem adesão bem moderada.

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Geralmente, nos sobradinhos vitorianos que são o sonho da classe média antenada – coisa de um milhão de libras, no mundo pré-vírus.

Ninguém canta óperas nas sacadas. Nem pensa em fazer isso

Imaginem uma campanha no Brasil com o slogan “Salvem o SUS”. Não ia fazer muito sucesso.

Na Inglaterra, toda a campanha para convencer a população a ficar em casa foi feita em cima do sistema público, o NHS. Em lugar de apelar pela salvação da população, a palavra de ordem é “Save our NHS”.

Ao receber alta, antes de ir se recuperar na casa de campo oficial dos primeiros-ministros, com a namorada grávida, Boris Johnson passou por Downing Street para fazer o discurso acima mencionado, todo ele ancorado nas maravilhas do NHS.

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“Estamos progredindo nessa batalha nacional porque o público britânico formou um escudo humano em torno do bem mais precioso desse país, nosso Sistema Nacional de Saúde.”

Cada país tem suas características nacionais intrínsecas, cada político tem seu jeito de exaltá-las e, obviamente, tentar usá-las para proveito próprio, cada momento histórico decisivo pode revelar os verdadeiros líderes.

Será que o imperfeito, falastrão, narcisista, competitivo, serialmente infiel e singularmente adepto de sua própria versão da verdade Boris Johnson desceu ao reino dos mortos para sair dele com a chave para atravessar o deserto de lágrimas que vem pela frente?

Deserto de lágrimas, evidentemente, é uma expressão que ninguém sai dizendo por aí na Inglaterra.

Mas ninguém poderia responder, agora, se o breve momento positivo de Boris vai durar mais do que os quinze minutos de praxe quando ele voltar a enfrentar a realidade: mil mortos por dia, uma queda de 15% a 25% do PIB, as decisões incrivelmente complexas sobre como equilibrar a salvação nacional entre as pulsões da reabertura da economia e da paralisação que equilibra a perda de vidas.

Como pálido consolo, ajuda um pouquinho ter a visão não emotiva que ele demonstrou na primeira teleconferência com sua equipe, quando já estava derrubado pelo coronavírus e começou a tossir:

“É, eu peguei a coisa, e é uma ***** de coisa.”

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