Incêndio na saída: Trump facilita coisas para quem quer vê-lo longe
O chocante e criminoso assalto ao Congresso transformou o presidente no pária que estava lutando para não ser depois da derrota nas urnas
Sem Twitter, Facebook e Instagram, Donald Trump é um homem derrotado. Não pelas urnas, onde perdeu, mas teve honrosos 74 milhões de votos, mas por seus próprios atos.
Derrotado, sem Twitter, Facebook e Instagram, abandonado por vários dos que ainda lhe eram fieis, arrastado metaforicamente na lama, um pária de quem poucos querem chegar perto.
“Estamos nessa situação por causa do orgulho ferido de um homem orgulhoso e da fúria de apoiadores que desinformamos deliberadamente nos últimos dois meses e incitamos à ação”, resumiu Mitt Romney, o mais antitrumpista dos senadores republicanos.
“O que aconteceu aqui hoje foi uma insurreição incitada pelo presidente dos Estados Unidos”.
As palavras do senador, o mais detestado pelos trumpistas de raiz resumem o tamanho do impacto dos acontecimentos de ontem.
Para manter o senso de proporção, vamos lembrar: não foi a Marcha sobre Versalhes (1789) nem a Tomada do Palácio de Inverno (1917), nem se viram os atos de violência concatenada ocorridos em atos comandados pelo Black Lives Matter.
Mas os trumpistas envolvidos no assalto ao Congresso conseguiram transformar a instituição numa espécie de Casa Rosada durante o atribulado velório de Maradona: entraram lá no susto, por causa de um esquema policial inacreditavelmente furado, jamais visto por quem conhece a segurança vigente mesmo em dias normais na capital americana.
Uma vez lá dentro, foram improvisando.
Sem líderes nem um plano maligno para sabotar as instituições democratas, agiram como turba.
Um sujeito que entrou no gabinete de Nancy Pelosi, reeleita presidente da Câmara, pôs os pés sobre a mesa e começou a falar no celular. “Você precisa largar tudo e vir aqui imediatamente”, propôs a um interlocutor.
Outro pegou uma foto de “lembrança” num gabinete não identificado; mais um foi fotografado carregando o pódio onde congressistas dão entrevistas mais formais.
No saguão das estátuas, posaram ao lado de presidentes conservadores como Ronald Reagan e George Bush pai.
Quando forças policiais começaram a retomar o controle, interno e externo, os manifestantes pareciam desolados.
“Somos nós que sempre ficamos do lado da polícia”, diziam, sem compreender a diferença entre um protesto pacífico e a invasão de uma instituição que encarna a democracia.
Outras frases: “Nós apoiamos a polícia”, “Vocês estão nos traindo”, “Queremos que vocês continuem a ter verba”.
São referências aos recentes protestos identificados com o Black Lives Matter.
Pensando em estar do lado do bem e defender um presidente que consideram injustiçado, fizeram o oposto. Ajudaram a jogar Donald Trump no fundo do buraco e empurrar congressistas que votariam numa contestação – inútil – ao resultado da eleição presidencial.
Mitt Romney, que se transformou numa voz da razão, alertou no domingo que o “notório plano” para contestar os votos de determinados estados no Colégio Eleitoral, apoiado pelos congressistas mais trumpistas, “pode projetar as ambições políticas de alguns, mas ameaça perigosamente nossa república democrática”.
A democracia americana, evidentemente, é mais forte do que algumas centenas de celerados que invadiram o Capitólio sem entender a diferença entre protestos justos e abusos criminosos.
E certamente mais forte do que um aventureiro que conseguiu capturar a Casa Branca em 2016 com os votos de eleitores frustrados com uma grande lista de reclamações e, a menos de duas semanas do fim do mandato, levou ao extremo a arte da autodestruição.