Argentina: Fernández diz a que veio; e não é nada bom
Entre louváveis gestos de conciliação, o novo presidente anunciou uma “reforma integral” da Justiça que havia enquadrado sua chefa e os outros
A parte boa foi curta, mas significativa.
Alberto Fernández empurrou a cadeira de rodas de Gabriella Michetti a quem coube, ainda como vice-presidente e presidente do Senado, dar posse a ele e a ela.
Todo mundo sabe quem são.
Também repetiu os gestos de convivência civilizada com Mauricio Macri, um gentleman de berço.
E até passou o bastão de comando para uma foto divertida com o filho Estanislao Fernández, de terno moderninho, gravata afrouxada e lenço de arco-íris LGBTQ etc etc na lapela.
A parte ruim já foi antecipada pela carranca da chefa quando sequer olhou para Macri ao trocar um cumprimento protocolar.
E ainda pediu outra caneta para assinar a posse como a vice-presidente mais poderosa da história.
Não queria sujar as mãos com a mesma usada por Macri, um constrangedor desaforo final.
De resto, Cristina Kirchner estava, naturalmente, irradiando alegria.
De macacão creme e poncho de renda por cima, levava o melhor acessório que alguém em sua posição pode desejar: vingança.
E ela veio a cavalo no discurso de seu pupilo, com o conhecido, mas sempre formidável, cinismo dos que sustentam na cara de pau o exato oposto da realidade.
A “reforma integral” do sistema federal de justiça que prometeu, e no qual Cristina e asseclas só não estão mais chafurdados por causa da imunidade, tem por objetivo “terminar com a mancha ominosa que um setor minoritário provoca na credibilidade da instituição judicial”.
As investigações sobre os fantásticos esquemas de corrupção da era cristinista, só ofuscados em dimensão e sofisticação pelos revelados pela Lava Jato, viraram uma campanha pervertida de perseguição política.
Todos já ouvimos isso antes. Mas ver um presidente, no dia de sua posse, enunciar a mentira como verdade continua a ser chocante.
Disse Alberto, como tantos o chamam:
“Assistimos a uma deterioração judicial nos últimos anos. Vimos perseguições indevidas e detenções arbitrárias, induzidas pelos que governavam e silenciadas por certa complacência mediática, por isso venho manifestar perante esta assembleia e perante todo o povo argentino um ‘nunca mais’.”
Pronto: começa a ser cumprida a ameaça de Cristina Kirchner a todos os que tiveram a ousadia de acusá-la, desde os juízes dos sete processos por corrupção até o motorista que anotou rigorosamente todos os transportes de sacos, sacolas e malas de dinheiro mandados por empreiteiros favorecidos por contratos amigos, começando na época de Néstor Kirchner.
Até o filho do novo presidente, que briga muito nas redes sociais por se considerar uma pessoa privada envolvida em fofocas públicas, já demonstrou o espírito da coisa.
“Nunca perdoarei o que fizeram com Florencia”, registrou num post anterior à posse do pai.
Florencia é a filha de Cristina que faz tratamento de saúde em Cuba, para evitar ser extraditada.
Durante a campanha, Cristina fez várias viagens para ver a filha, que sofre de linfedema nas pernas – uma obstrução dos vasos linfáticos que provoca muito inchaço e, no caso dela, não tem causa conhecida.
As relações entre mãe e filha ficaram estremecidas depois que Florencia foi envolvida nos múltiplos inquéritos por corrupção, como sócia da empresa familiar formada depois da morte de Néstor e titular de um cofre cheio de dólares.
Estanislao, que posta como drag queen e cosplayer, é ativo nas redes sociais, embora momentaneamente controlado.
Já brigou por causa de uma foto “roubada” em que aparece abraçado a um dançarino. A namorada dele disse que Estanislao, ou Dyhzy, seu nome artístico, “é livre para fazer o que quiser”.
“Temos uma relação aberta e somos jovens. Não há nada a esconder, pode dançar com quem quiser e fazer o que quiser sem problemas.”
Tem toda razão. No âmbito do comportamento pessoal consensual, é saudável e civilizado que cada qual viva a vida como queira.
O problema, com o qual o filho não tem nada a ver, é que Cristina e toda a enorme variedade de peronistas beneficiados por alguma instância de poder agora se consideram “livres para fazer o que quiserem”.
A única esperança é que Alberto Fernández tenha prometido sua reforma judicial mais para pagar dívidas políticas e a catastrófica situação econômica do país ocupe todas as suas atenções.
Mas é uma esperança muito, muito pequeninina.