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O incrível destino de Thomas Cromwell

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Por Simone Costa
Atualizado em 13 ago 2018, 21h57 - Publicado em 17 set 2011, 10h35

“Eis aí um homem engenhoso.” Era assim que as pessoas se referiam ao inglês Thomas Cromwell, que se tornou o mais poderoso conselheiro do rei Henrique VIII, no século XVI. Diziam que ele sabia o Novo Testamento de cor e que era convincente ao explicar aos inquilinos por que os aluguéis eram justos, além de conseguir persuadir uma moça a se casar com quem ela não queria. Tão hábil, mas incapaz de esquecer as surras que levara do pai quando criança, um homem rude que ganhava a vida como ferreiro e cervejeiro. Em sua memória, estava gravada particularmente a última vez em que apanhou e fugiu de casa, em Putney, na Inglaterra. Era 1500 quando isso ocorreu e Cromwell não sabia ao certo sua idade, mas dizia ter cerca de 15 anos. Ele viveu pela Europa trabalhando como soldado mercenário das forças francesas, como comerciante e contador até voltar à Inglaterra para continuar sua surpreendente trajetória, driblando as rígidas convenções da sociedade do período em sua ascensão ao poder. É a história de Cromwell que o leitor pode saborear em Wolf Hall, romance histórico da inglesa Hilary Mantel (tradução de Heloisa Mourão, Record, 588 páginas, 59,90 reais).

Naquele tempo em que “meio mundo se chamava Thomas”, Cromwell não tinha um nome de família importante para se destacar, mas era audacioso, sedutor e fluente em italiano, francês e latim, além de compreender um pouco de espanhol. Formou-se em direito ao regressar à Inglaterra e se tornou o fiel escudeiro do chanceler britânico, o cardeal Thomas Wolsey. Pode-se dizer que Cromwell estava no lugar certo na hora certa: ele era conselheiro de Wolsey quando este negociava com o papa Clemente VII a anulação do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão. A tão conhecida história da corte inglesa, marcada por sexo, intrigas e sentenças de morte, é o pano de fundo da ascensão de Thomas Cromwell ao poder.

Henrique VIII estava preocupado com a continuidade da dinastia Tudor, já que Catarina não havia lhe dado um filho homem. Henry Fitzroy, o duque de Richmond, era filho ilegítimo e havia muita gente interessada no trono para que o rei se arriscasse a deixá-lo a um bastardo. Por isso, o monarca queria se separar e se casar com Ana Bolena, de uma família que ele já conhecia bem – as más línguas diziam que ele fora amante da mãe e da irmã de Ana. Para convencer o papa a aceitar a anulação, Henrique VIII afirmava que Catarina não era virgem quando se casou com ele, vinte anos antes, já que ela teria consumado o primeiro matrimônio com o cunhado, Arthur. O cardeal Wolsey falhou nas tentativas de anular o casamento e acabou destituído de todos os bens e poderes.

Apesar de sua lealdade ao cardeal, Cromwell não se negou a trabalhar para Henrique VIII, que conhecia suas habilidades como negociador do cardeal e como representante na Câmara dos Comuns. Cromwell tornou-se conselheiro do monarca. E, mesmo menosprezado pelo entourage real por não ter título de nobreza, não se deixou abater. “Quando pensa em sua vida pregressa – aquele garoto quase morto sobre o calçamento de Putney –, ele não sente qualquer compaixão por si, apenas uma vaga impaciência: por que o garoto não se levanta?”, refletia quando se lembrava da última vez em que foi espancado pelo pai. Naqueles tempos em que alguém podia ser condenado à morte por ler a Bíblia em inglês, o incansável Cromwell não parecia apenas querer satisfazer os anseios do rei: ele idealizava uma Inglaterra livre da batuta de Roma. Foi ele quem convenceu o Parlamento do casamento de Henrique VIII com Ana Bolena e de sua coroação como rainha, e também quem redigiu as leis que transformariam o rei no chefe da Igreja britânica.

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Autora de uma dezena de livros (entre eles, A Sombra da Guilhotina, lançado no Brasil em 2009 pela Record), a inglesa Hilary Mantel, 59 anos, levou cinco anos para escrever Wolf Hall, laureado em 2009 com o Man Booker, o mais importante prêmio literário inglês. O livro é minucioso e traz uma riqueza de detalhes desse período da era Tudor. Dá gosto ler a caracterização dos personagens, que são abundantes (a lista com todos eles ocupa quase quatro páginas), e os diálogos recheados de ironias e sarcasmos. Em uma entrevista, Hilary disse que começou a pesquisa com a ideia de que Cromwell era um vilão e que, lendo suas cartas, percebeu que ele era ainda mais interessante do que supunha. “Seu espírito habilidoso e sua vasta imaginação o colocavam acima de seus contemporâneos”, disse ela.

Cromwell é considerado por alguns historiadores, como o especialista na dinastia Tudor Geoffrey R. Elton, o modernizador do governo britânico. Vários filmes e livros, incluindo uma biografia lançada em 2007 por Robert Hutchinson, o retratam como um vilão corrupto e responsável pela morte de Thomas More, chanceler que assumiu o cargo no lugar de Wolsey e que passaria para a história como o autor de Utopia. O Cromwell de Hilary Mantel é um personagem que ganha a simpatia do leitor. A narrativa, escrita no tempo presente, é feita sob o ponto de vista de Cromwell, que é um personagem cativante. Mesmo que ele não fale sobre seus sentimentos, sobre, por exemplo, a tristeza pela morte da mulher e das duas filhas, é possível perceber como ele sofre e como tenta manter a lembrança da família morta, além de buscar ser um pai afável e caloroso para o filho Gregory e para os outros jovens que vivem sob sua custódia.

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Ele também sabe escolher bem as palavras, ainda que no íntimo tenha gana de dizer outra coisa. Ao ser chamado pelo rei durante a madrugada, depois de o monarca ter um pesadelo com o pai, Cromwell diz a Henrique que o sonho significa que aquela é “a hora” de ele “se tornar o governante que está destinado a ser, e de tornar-se a única e suprema cabeça de seu reino”. Mas na verdade o que tem vontade de dizer é que o rei tem 40 anos e está “na hora de crescer”.

Cromwell é um animal político e manobra com habilidade para conseguir o que quer, mas não é um ser humano sórdido. É um homem equilibrado, que tenta salvar a pele dos condenados à morte, como Thomas More, punido por se recusar a jurar a favor da união de Henrique VIII e Ana Bolena. Ele não chega a pensa em retirar as acusações contra More, por quem nunca teve admiração, mas procura convencê-lo a aceitar o casamento do rei como forma de manter-se vivo.

More, canonizado em 1935 e declarado santo padroeiro dos políticos e estadistas em 2000 pelo papa João Paulo II, é aliás um personagem que merece um comentário à parte. Ele não tem nada do virtuoso More de O Homem que não Vendeu Sua Alma, filme de 1966 baseado no texto de Robert Bolt. Aqui, ele é responsável pela tortura e morte de britânicos que teimavam em ler a versão da Bíblia em inglês. “Há histórias de que, em sua guarida em Chelsea, ele mantém os suspeitos nos troncos enquanto lhes aflige tormentos e pregação: o nome do impressor, o nome do capitão do navio que trouxe estes livros para a Inglaterra”.

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O desfecho do livro é um tanto abrupto. Depois da execução de More, o rei viaja com sua corte e Cromwell tem um breve descanso. É quando pensa em visitar a família Seymour em Wolf Hall. O lugar parece uma espécie de charada da autora. É lá que vive a família de Jane Seymour, dama de companhia de Ana Bolena. Ela será a nova rainha. Mas nem essa substituição no trono inglês nem a chegada de Cromwell ao posto máximo de chanceler são narrados em Wolf Hall. A debacle de Cromwell vem logo em seguida, mas Hilary Mantel nos deixa apenas seu brilhantismo e sucesso. A queda, ao que parece, virá num próximo volume.

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AS FIGURAS HISTÓRICAS DE WOLF HALL

Thomas Cromwell (c.1485-1540)
Normalmente visto como um vilão, responsável pela morte de Thomas More e por expulsar a Igreja Católica da Inglaterra, Cromwell ganhou notoriedade por ter saído de uma infância pobre e conquistado um título de nobreza e o cargo de chanceler de Henrique VIII numa época em que a palavra meritocracia não significava nada. Hilary Mantel conta a ascensão de Cromwell sob o ponto de vista do próprio personagem, que é audacioso, sedutor e ambicioso, mas que também parece preocupado com a organização do estado e a liberdade religiosa. Cromwell conseguiu a anulação do matrimônio de Henrique VIII com Catarina de Aragão para que ele se casasse com Ana Bolena e foi o responsável pela aprovação das leis que o tornaram chefe da Igreja no país. Ele ainda apoiou a substituição de Ana Bolena por Jane Seymour, mas acabou executado depois de ter aconselhado o rei a se casar com a princesa alemã Ana de Cleves para uma aliança que não deu certo. Seus inimigos aproveitaram o fracasso da união para convencer o rei a condená-lo à morte por traição.

Henrique VIII (1491-1547)
O rei Henrique VIII era apenas o segundo da dinastia Tudor a ocupar o trono. Daí sua preocupação em ter um herdeiro para substituí-lo. O único filho homem que tinha era bastardo. A filha Maria não poderia assumir já que “uma mulher no trono inglês seria um ultraje diante da natureza”. Para conseguir a anulação de seu casamento com Catarina de Aragão, passou a ser o chefe da Igreja britânica, separando-a de Roma. Ana Bolena, sua nova mulher, no entanto, não lhe deu um filho, mas outra filha (a futura rainha Elizabeth I). Ele, então, casou-se com Jane Seymour, que se tornaria mãe do rei Eduardo VI. Henrique VIII teve ainda outros três casamentos. Além dos muitos matrimônios, ele também teve várias amantes, entre elas a mãe e a irmã de Ana Bolena. Para Cromwell, a vida privada do rei não lhe dizia respeito. “Se ele fosse opressivo, se pretendesse atropelar o Parlamento (…) e governasse por si mesmo… Mas ele não faz isso. Portanto, não posso me incomodar com o modo como ele se comporta com suas mulheres”, pensava Cromwell. Henrique VIII foi excomungado pelo papa Clemente VII em 1533.

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Ana Bolena (1507-1536)
Depois de passar a infância na França, Ana Bolena voltou para a Inglaterra e foi bastante cortejada pelos nobres ingleses. Mas sua intenção era mesmo ser rainha. Ela não estava preocupada nem com o fato de que sua irmã Maria ainda ocupasse a cama real uma vez ou outra. Caracterizada pela autora como uma moça vivaz e com forças suficientes para manipular o monarca para realizar seus pequenos ou grandes caprichos, Ana Bolena insistiu para que o cardel Wolsey fosse desalojado para que ela pudesse viver no castelo que era ocupado por ele. Ela também não gostava de Thomas More, que se opôs a seu casamento, por isso, sentiu-se vingada com sua morte. “Ana não é um ser carnal, ela é um ser calculista, com um cérebro frio e preciso em atividade por trás de seus ávidos olhos negros”, pensava Cromwell sobre a encarregada de dar um herdeiro ao rei. Ao falhar nesse propósito (ela deu à luz uma menina, que se tornaria a rainha Elizabeth I), Ana foi morta acusada de adultério.

Catarina de Aragão (1485-1536)
A espanhola Catarina de Aragão, filha dos reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela, foi prometida ainda criança ao príncipe Arthur, herdeiro do trono e irmão mais velho de Henrique VIII. Arthur morreu logo depois do matrimônio e Catarina alegou ser virgem para que o papa lhe concedesse a permissão para se casar com Henrique alguns anos depois. O casal viveu junto por duas décadas, mas Catarina não deu ao rei um herdeiro. Dos seis filhos que teve, apenas Maria sobreviveu, numa época em que ninguém acreditava na possibilidade de uma rainha assumir o trono (mais tarde, Maria seria coroada). Como o papa Clemente VII estava sob domínio do imperador Carlos V, sobrinho de Catarina, o pedido de anulação do casamento feito por Henrique VIII foi negado. Mas isso não bastou para que Catarina continuasse rainha. Destituída do trono, separada da filha Maria e jogada em um castelo bem menos confortável que o castelo real onde estava acostumada a viver, Catarina não perdeu a altivez. “A natureza prejudicou Catarina ao não fazer dela um homem; ela teria superado todos os heróis da Antiguidade”, pensava Cromwell sobre ela.

Thomas More (1478-1535)
O autor de Utopia é tido como uma reserva moral de seu tempo por se opor à anulação do casamento de Henrique VIII e Catarina de Aragão e à separação da Igreja britânica de Roma. Canonizado em 1935 e declarado santo padroeiro dos políticos e estadistas em 2000 pelo papa João Paulo II, Thomas More, no entanto, é retratado por Hilary Mantel como intransigente e perseguidor dos simpatizantes com o protestantismo. “São homens que conhecem More já há vinte anos. Eles sabem como More enviuvou Lucy Petyt. Sabem como ele destruiu o negócio de Monmouth, porque Tyndale (tradutor da Bíblia para o inglês) se hospedara em sua casa. Sabem que ele colocou espiões em suas residências”. More se negou a jurar sobre o Ato de Sucessão, que garantia o trono ao filho de Henrique VIII com Ana Bolena, e sobre o Ato de Supremacia, que transformava o rei no chefe da Igreja na Inglaterra. Thomas Cromwell tentou persuadi-lo para que fizesse o juramento, mas ele foi irredutível e, assim, condenado à morte. “Outros pessoas talvez sintam piedade por ele, mas ele (Cromwell) se abstém.”

Simone Costa

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