A lógica, os números e as ilusões
Roteirista Daniel Fraiha mostra que até a matemática sofre no Brasil de Bolsonaro
Como é bom ouvir uma frase razoável (não digo nem boa) vindo de algum integrante do governo nos tempos atuais. É o básico, mas parece um grande feito, como a última do vice-presidente, quando disse: “é lógico que vai ter eleição”. Deveria ser, mas não é tão lógico assim. Não sei se o general tem acompanhado as notícias, talvez tenha ficado meio desconectado em Angola, mas o chefe dele andou dizendo umas besteiras nada lógicas, como de costume.
Aliás, a lógica foi uma das primeiras a morrer nesse governo. Começaram por ela. Depois vieram a educação, o respeito, a civilidade, a saúde e a própria população, às centenas de milhares. Não necessariamente nesta ordem, o “esforço” foi paralelo…
Nos últimos dias, o mais novo alvo foi a matemática. O presidente atacou os números pra fazer um “milagre” que só funciona no mundo sem lógica em que vive (onde -4% num ano e +5% no outro seriam iguais a +9% nos dois).
A dúvida que sempre fica é se foi ignorância ou mau caratismo deliberado mesmo. Fez para iludir quem tem preguiça ou incapacidade de entender contas um pouquinho mais difíceis, como as que envolvem porcentagem, ou foi só mais uma estupidez mal calculada?
Não dá pra ter certeza, as duas coisas são sempre muito prováveis quando se trata da figura em questão, mas o fato é que toda simplificação de um assunto aumenta o seu alcance.
O livro “O homem que calculava”, de Malba Tahan (pseudônimo do brasileiro Julio Cesar de Mello e Souza), vendeu milhões de exemplares contando uma boa história e simplificando contas para leitores do mundo todo. Facilitava o entendimento, entretia, mas não iludia.
Hoje, a especificidade das sombras que nos governam tem sido simplificar e envelopar histórias mentirosas pra vender ilusões. Já haviam usado números falsos outras vezes, mas mentir num cálculo básico ao vivo foi a primeira.
É a famosa estratégia de empurrar os limites aos poucos. A barbárie já se instalou, mas parece que ainda não chegamos ao fim da linha. Até onde vai?
Vale lembrar os versos finais do poema “Conversa Fiada”, de Mário Quintana, em que ele diz que seria um “grande matemático” numa próxima vida, para deixar de sofrer, porque “a matemática é o único pensamento sem dor”.
Ilusão de tempos mais românticos.
No Brasil de hoje, até a matemática sofre.
* Daniel Fraiha é jornalista e roteirista, Mestre em Criação e Produção de Conteúdos Digitais pela UFRJ e sócio da Projéteis – Criação e Roteiro