Nos EUA e no Brasil, programa social se torna ferramenta de discriminação
Trump nega cidadania a imigrantes inscritos em projetos assistenciais e Bolsonaro pune famílias pobres de estados governados por seus adversários políticos*
Programas sociais, mesmo quando justos e necessários, sempre foram alavanca de plataformas políticas. Pode-se discutir o princípio ético existente por trás desse tipo de atitude, mas é fato, também, que muitas das chamadas conquistas sociais nasceram desse jogo de toma-lá-dá-cá de natureza eleitoral. Mas EUA e Brasil inovam agora nesse campo com uma inversão perversa em que os projetos de apoio aos menos favorecidos se tornam ferramentas de violência social, política e econômica.
Nos Estados Unidos, o governo Trump implementou há duas semanas uma medida que impede que imigrantes usuários de programas sociais obtenham cidadania. Com isso, a administração republicana pretende reduzir a quantidade de recursos aplicados em assistência social e, ao mesmo tempo, desestimular a chegada de novos imigrantes. Para um candidato a residente nos EUA, receber, por exemplo, cupons do sistema de garantia de alimentação equivale agora a entrar na fila de deportação.
Aqui no Brasil, análises detalhadas demonstram que o desmonte parcial do Bolsa Família, promovido pelo governo Bolsonaro, mira basicamente estados governados pelos políticos que ele considera seus maiores adversários. Números divulgados nesta quinta-feira, 5, pelo Estadão/Broadcast, revelam que só 3% dos benefícios concedidos no mês de janeiro foram destinados à região Nordeste, onde vivem quase 30% da população brasileira, com uma taxa de pobreza que é dobro da média brasileira.
Há algum tempo, soube-se que o represamento na concessão do benefício na gestão Bolsonaro criou uma fila de 1,5 milhão de famílias à espera de inclusão no Bolsa Família. Em 2019, houve 381 mil cancelamentos de inscritos no programa, mais de 56 mil deles no Maranhão. O Estado de Santa Catarina, em contrapartida, conforme a reportagem do Estadão, teve número duas vezes maior de concessão de benefícios do que o Nordeste inteiro, no mês de janeiro.
Mais grave até do que essa transformação punitiva de projetos que aliviam (bem pouco, aliás) os efeitos da desigualdade é a divulgação velada de uma leitura que apresenta esses programas como ferramentas de desestímulo ao trabalho e de desperdício de impostos – como sempre insinuam os apoiadores de Trump e os bolsonaristas mais inflamados. Essa perspectiva, que tem parentesco com aquela que pretendia recolher contribuições ao INSS do seguro-desemprego, simplesmente inverte a realidade e a natureza de ações que buscam compensar minimamente os efeitos de uma situação de miséria lentamente construída e cujo enfrentamento é um dever legal e amparado nas políticas de direitos humanos.
Os programas de renda mínima têm sustentação em pilares que vão de próceres do iluminismo ao professor Milton Friedman e tomam como base algumas ideias do economista americano John Rawls (1921-2002), que considerava, em definição bastante rústica, que os indivíduos, sendo possível desvinculá-los do ambiente de nascimento, podem ter potenciais semelhantes de desenvolvimento, desde que tenham igualdade de oportunidades no ponto de partida. Seu conceito de justiça equitativa propunha a busca da neutralização das circunstâncias que estabelecem vantagens econômicas e culturais para que, em condições minimamente equânimes, as pessoas enfrentem situações de competição socialmente mais justas.
Nestes tempos em que mentes obscuras voltam a apontar indícios de comunismo sob qualquer tapete, cabe lembrar que o desenvolvimento do capitalismo decorre exatamente da ampliação das oportunidades de empreendimento, antes exclusivas dos senhores feudais. Ampliar o horizonte econômico de um indivíduo não restringe a capacidade de outro nem estabelece algum tipo de democratização da injustiça no longo prazo.
Pelo contrário, a conformação social desigual, que tanto prezam os que pregam a naturalidade da prosperidade dos mais fortes, será um processo esperado nas teorias de Rawls na medida em que uns terão mais sucesso, ambição e até sorte do que outros ao longo da vida. Quem gosta de analogias esportivas poderia fazer uma comparação segundo a qual todos os atletas podem se alimentar da mesma forma antes de uma competição.
Nenhum projeto de renda mínima alcança, é claro, objetivo tão abrangente, mas há tentativas em países como a França, a Alemanha e a Índia, entre muitos outros. Antes de Trump e de Bolsonaro não se tinha notícia de que em algum lugar esse tipo de programa, em vez de alavancar votos, tornou-se ferramenta para a prática da discriminação.
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