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Por que é fundamental conhecer a genética do novo coronavírus

Só assim podemos entender de fato como a pandemia começou e como está se propagando mundialmente

Por Salmo Raskin
Atualizado em 27 abr 2020, 18h02 - Publicado em 27 abr 2020, 17h27

Quando nos deparamos com uma doença infecciosa, a princípio pensamos que não há nenhuma relação com a genética. Mas não é bem assim. A recente pandemia pelo vírus SARS-CoV-2 (“novo” coronavirus) nos ensina que é muito importante conhecer a genética do coronavirus e de seus hospedeiros, em especial o humano. Compreender a sequência do genoma de um único indivíduo com o vírus SARS-CoV-2 já é importante, mas a comparação de múltiplos genomas de diferentes pacientes, animais, lugares e em diferentes períodos de tempo, é muito mais informativo.

Conhecendo a genética do coronavírus podemos entender como esta pandemia começou, com que velocidade ele muda seu código genético e como está se propagando mundialmente.

SARS-CoV-2 pertence ao gênero betacoronavirus, que infecta principalmente os morcegos, mas também infectam outras espécies, como seres humanos, camelos e coelhos.

O material genético do novo coronavirus (SARS-CoV-2) é um pequeno RNA, composto por apenas trinta mil bases nitrogenadas. O genoma contem 15 genes. Para termos de comparação, o genoma humano é composto de DNA, tem cerca de 3 bilhões de bases nitrogenadas e cerca de 20 mil genes. Ao desvendar a sequência do Genoma dos primeiros casos do novo Coronavirus, os pesquisadores chineses imediatamente confirmaram que a sequência genética do SARS-CoV-2 é extremamente parecida com a do genoma de um “velho” Coronavírus, sequenciado em 2015, que infecta morcegos, e que através dos morcegos infecta animais, que infectam o ser humano, que infecta outros seres humanos.

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A sequência genética identificada pelos pesquisadores chineses no SARS-CoV-2 é também muito parecida com a do Pangolim malaio (Manis javanica), um mamífero parecido com o Tamanduá, que é caçado e utilizado como especialidade gastronômica pelas populações das zonas onde habita. As suas escamas são traficadas para serem utilizadas como afrodisíaco. Estes pangolins foram ilegalmente importados (até porque é uma espécie considerada como criticamente ameaçada de extinção) para o porto de Guangdong, uma província no sul da China. Daí a hipótese mais aceita atualmente é que o morcego infectou o pangolim, que ao ser oferecido como alimento no mercado de Wuhan, na província de Hubei, no centro da China, infectou humanos. Que infectaram e infectarão mais de um milhão de humanos, já tendo causado, até este momento, a morte de 33 mil.

Estudos do Genoma do SARS-CoV-2 demonstraram que as teorias de conspiração que sugerem que o coronavirus foi criado dentro de um laboratório para causar uma guerra biológica, não se comprovam, visto que por simples evolução natural, e com poucas mutações, os “velhos” Coronavirus se transformaram na natureza em “novos” coronavirus.

O Brasil, de forma inédita, teve (e continua tendo) papel pioneiro neste tipo de investigação genética. Antes mesmo dos pesquisadores italianos conhecerem a genética do Corononavirus que infectou a Itália, pesquisadores brasileiros do Instituto Adolfo Lutz (IAL) e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP), 48 horas após a confirmação dos primeiros brasileiros infectados pelo novo Coronavirus, já haviam sequenciado o genoma do Coronavirus destas pessoas. E obtiveram dados inéditos e importantes não só para o Brasil, mas também para a Itália, bem antes da própria Itália obter estes dados. Estes dados tem trazido informações interessantes e importantes. Ambos os brasileiros infectados estiveram na região da Lombardia, no norte da Itália, e depois retornaram ao Brasil.

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O genoma do Coronavirus que infectou o primeiro paciente brasileiro é parecido com o genoma do Coronavirus que infectou alemães, mexicanos e finlandeses. Mas agora que os dados genômicos dos Coronavirus que infectaram os italianos começam a surgir na própria Itália, já se pode identificar similaridades dos Cororonavirus “brasileiros” com os Coronavirus italianos; o genoma do primeiro paciente brasileiro é igual ao do vírus que infectou um paciente da Lombardia, Itália. Já o Coronavirus que infectou o segundo paciente brasileiro é diferente daquele que infectou o primeiro, e contem sequências de DNA de Coronavirus de diversos países, incluindo China, Inglaterra, Austrália, França, EUA, Singapura, Taiwan e Suécia. Estes dados devem ser ainda interpretados com cautela, pois estamos em plena pandemia, mas sugerem que os dois primeiros casos brasileiros são frutos de contaminações independentes, e que houveram múltiplas rotas diferentes de introdução do Coronavirus na Itália.

Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), da USP (CADDE) e da Universidade de Oxford na Inglaterra também se juntaram aos esforços científicos para desvendar o genoma dos SARS-CoV-2 que infectam os brasileiros. Estes grupos estão dando um passo importante para o combate ao COVID-19 no país, ao determinarem a sequência dos primeiros 19 genomas de brasileiros que tiveram a doença, e residem em cinco estados. A pesquisa já demonstrou geneticamente que o SARS-CoV-2 foi introduzido no Brasil oriundo de diversos países europeus além de casos importados diretamente da China, em menor número.

Além disso, as análises genéticas confirmaram a transmissão local do SARS-CoV-2 dentro do Brasil. O Brasil tem dimensões continentais, maior do que a Europa (sem a Rússia) e maior que os Estados Unidos (sem o Alasca). Certamente haverão diferenças entre os diversos estados, na genética e na propagação do vírus, com consequências para políticas de contenção, que deverão ter normas mais abrangentes nacionais, mas também condutas particularizados a cada estado ou região do Brasil.

Desenvolvimento de testes diagnósticos

Conhecendo a genética do SARS-CoV-2, podemos desenvolver testes diagnósticos precisos para saber se fomos infectados (mesmo nas pessoas que não tem sintomas) e se já estamos curados do COVID-19. O teste do genoma do coronavirus (RT-PCR) é considerado o mais importante método diagnóstico confirmatório, e é também utilizado para validar outros métodos, como a dosagem de anticorpos produzidos pelo ser humano contra o coronavirus. Após a coleta de uma amostra das vias respiratórias (da boca ou do nariz), utilizando-se técnicas de biologia molecular que “buscam” as sequências genéticas do vírus nesta amostra, são realizadas duas etapas; na primeira, o laboratório investiga a presença (ou não) da sequência genética do gene “E”, cuja proteína por ele codificada é importante na formação do envelope que circunda o genoma de vários Coronavírus.

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A análise do gene “E” não é específica do SARS-CoV-2, mas sim do subgênero Sarbecovirus. A análise deste gene, portanto, é considerada uma triagem para detectar qualquer beta-coronavírus associado ao morcego. Caso o teste dê negativo para a sequência genética do gene “E”, podemos dizer que naquele momento o material genético do SARS-CoV-2 não estava presente na amostra coletada. Caso o teste dê positivo para a sequência genética do gene “E”, testa-se de imediato a mesma amostra para verificar a presença da sequência genética do gene “RdRP”, esta sim, específica do vírus SARS-CoV-2. Cerca de 5 dias após a contaminação, o teste se torna positivo, ou seja, o genoma do vírus já pode ser detectado pelo teste genético. O mesmo teste pode ser utilizado para determinar “cura viral”, ou seja, em pacientes em que o teste anteriormente já tinha dado positivo, após cerca de 7-14 dias da infecção, o genoma do vírus não deve mais estar presente, em especial naqueles que já deixaram de apresentar os sintomas.

Conhecer a genética do coronavirus é fundamental para podermos desenvolver medicamentos que ataquem os pontos fracos de seu RNA, e também para o desenvolvimento de vacinas.

O conhecimento sobre a sequência genética de referência de outros Coronavirus, e a comparação com a do SARS-CoV-2, nos permitrá entender o que o torna tão poderoso, porque causa doença tão grave e porque infecta com tanta facilidade. Ao contrário das notícias assustadoras não-científicas, a velocidade na qual o SARS-CoV-2 muda seu código genético (taxa de mutação), não é tão elevada. E este fato, se realmente vier a ser comprovado com mais estudos genéticos, poderá significar que uma futura vacina a ser desenvolvida poderá ser única e ampla para todas as populações e aplicada, talvez, uma única vez. Daí a importância de cada país ter a capacidade tecnológica de fazer estudos sistemáticos e periódicos de epidemiologia molecular localmente, pois se, por exemplo, se identificam diferentes mutações no genoma do SARS-CoV-2 em brasileiros, esta informação é fundamental para o desenho de vacinas que protejam também a nossa população.

Conhecer a genética do hospedeiro humano também é importante para tentar entender as diferentes respostas que o ser humano tem ao coronavirus.

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Toda infecção depende não apenas do agente infeccioso, mas também de quem ele infecta. Muitas dúvidas que ainda pairam sobre a infecção do coronavirus, talvez possam ser respondidas comparando genomas de humanos. Por que só uma parte da população exposta se infecta? Por que só uma parte dos infectados adoece? Porque algumas pessoas jovens e sem outros problemas de saúde adoecem? Porque a enorme maioria das crianças é assintomática ou tem sinais bem leves? Os pesquisadores estão investigando se as respostas não estariam escondidas nas variantes do nosso próprio genoma.

É difícil dizer se esta linha de pesquisa trará frutos práticos, mas um dos genes humanos que já está sendo comparado entre aqueles com doenças graves, aqueles com doenças leves e aqueles infectados sem doença, é o gene ACE. Este gene codifica para uma proteína que funciona como um porteiro da entrada da célula, recepcionando a entrada do SARS-CoV-2 na célula humana. Variações neste gene podem fazer com que uma quantidade maior ou menor desta proteína seja produzida, e explicar esta grande variabilidade de manifestação da COVID-19. Outro gene que já se investiga é o CCR5, que é comprovadamente um dos porteiros para a entrada na célula de outro vírus, o HIV. Variantes neste gene explicam parte da resistência a infecção que um subgrupo de pessoas expostas ao vírus HIV tem. Talvez algo similar ocorra em relação ao SARS-CoV-2. Variantes nos genes do complexo HLA e até naqueles que determinam nossos tipos sanguíneos já estão sendo estudados em um consórcio internacional de pesquisa denominado “The COVID-19 host genetics initiative” (https://www.covid19hg.com).

Estas pesquisam talvez tragam à tona ferramentas que possam informar quem estaria em maior ou menor risco de se infectar, de desenvolver a COVID-19, de apresentar forma leve ou grave, e podem servir de base para novos tratamentos.

O Brasil despontou mundialmente nas pesquisas de sequenciamento do genoma do SARS-CoV-2. Então porque tem sido um vexame a oferta de kits diagnósticos para os testes genéticos?

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Mais cedo ou mais tarde, o Brasil acaba pagando muito caro por seus erros históricos. O Brasil está pagando um preço enorme por nunca ter feito investimentos na produção de reagentes para análises genéticas. A falta de kits para diagnóstico do Coronavirus no país todo, não é uma falha deste ou daquele governo. Muito pior, é uma escolha que fazemos cronicamente pelo subdesenvolvimento, quando desperdiçamos dinheiro, quando não priorizamos a pesquisa científica, toleramos corrupção, desvios de verbas, má gestão, etc. Reparem que os países que estão tendo menor taxa de letalidade pelo coronavirus são justamente aqueles que optaram por testar o maior número de pessoas suspeitas, isolando os casos positivos e seus contatos, Coréia do Sul, Alemanha, EUA e a própria China depois das mortes do epicentro. Não por coincidência são países que tem produção própria de reagentes para fazer o teste de RNA para confirmação do coronavirus. O Brasil, historicamente, nunca investiu no desenvolvimento de reagentes para análises de biologia molecular.

Praticamente tudo (até os equipamentos) é, e sempre foi importado dos EUA ou da Europa. O preço desta negligência histórica veio, com perdão do trocadilho, na carona do coronavirus. Os EUA e a Europa estão com uma demanda interna enorme de testes genéticos e simplesmente pararam de vender os kits para o exterior (leia-se Brasil, que é o que nos importa). Resultado? Hoje, na maior parte do Brasil, é praticamente impossível fazer um teste confirmatório genético para o vírus SARS-CoV-2, a não ser que você esteja internado e com insuficiência respiratória. Por causa desta grave falha, deixamos de tentar fazer a contenção do vírus nas fases fase epidemiológica de “casos importados” e fase epidemiológica de “transmissão local”, e pulamos direto para a fase de transmissão comunitária ou sustentada, etapa esta que normalmente sucede a fase de transmissão local e é caracterizada pelo aumento significativo de casos em determinada região, não sendo mais possível rastrear a origem dos casos, ou seja, não é mais possível determinar quem transmitiu o vírus para o paciente. Para definir que determinada cidade ou estado tinha transmissão comunitária do novo Coronavírus, precisaríamos ter feito o teste genético de detecção do vírus SARS-CoV-2 em amostra respiratória (nasofaringe/orofaringe) de pacientes que apresentavam resfriado ou síndrome gripal, sem vínculo com viagem internacional (fase epidemiológica de “casos importados”), nem contato com pacientes confirmados com COVID-19 (fase epidemiológica de transmissão local).

Não fizemos, apesar de que temos o know-how para ter produzido milhões de kits. Porém as poucas instituições de pesquisa brasileiras que teriam capacidade de desenvolver tais kits só receberam investimento para produzir dois mil kits para o país todo, e muito tardiamente. Agora os pesquisadores estão tendo que correr atrás do tempo, para produzir um milhão de kits, mas não podem fazer milagre: o número adequado de kits só estará disponível quando já nem forem tão necessários. Os laboratórios que realizam os exames também não têm a mínima culpa, não podem fazer exames sem reagentes! Não produzimos, e não tomamos, preventivamente e planejadamente, a iniciativa de importar precocemente grande volume destes reagentes e equipamentos em Janeiro ou Fevereiro de 2020. Só nos resta a penosa defesa através do “lockdown” geral e radical. Não é este governo ou aquele, não é “direita” ou “esquerda”, a verdade é que somos historicamente subdesenvolvidos, e mais cedo ou mais tarde, sempre pagamos preço caríssimo por isto.

Por estas e outras, quando algum corrupto argumentar que nunca matou ninguém, e que o crime dele é mais leve, não acredite; a falta de investimentos em pesquisa científica também se deve a falta de verba desviada para corrupção. E a falta de tecnologia mata! A pandemia por SARS-CoV-2 nos deixará várias lições, e essa é uma delas. Para saber se o país está indo na direção dos menos desenvolvidos ou dos mais desenvolvidos, não é difícil; Só veja se o país está investindo mais ou menos em Ciência, tecnologia de ponta, inovação. A resposta desta pergunta te dará uma boa ideia do impacto que terão, no Brasil, as próximas epidemias por COVID-20, COVID-21, COVID-22…

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Salmo Raskin
(Gilberto Tadday/VEJA)
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