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Por José Casado
Informação e análise
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As expectativas das mulheres sobreviventes sobre o país depois da pandemia

A CPI deu rosto às vítimas, ontem. Giovanna, Mayra e Katia, sobreviventes, pincelaram sequelas, incertezas e expectativas nas suas famílias vitimadas

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 19 out 2021, 08h00

São mais de 603 mil pessoas mortas, na contagem de ontem à noite. É mais gente do que o número de habitantes de sete capitais (Porto Velho, Macapá, Florianópolis, Rio Branco, Boa Vista, Vitória e Palmas). As razões já foram exumadas na CPI da Pandemia e devem ser resumidas no milhar de páginas do memorial do Senado, cuja versão final começa a ser debatida hoje.

A comissão conseguiu dar um rosto às vítimas, na série de depoimentos de ontem. Dos fragmentos de memórias dos parentes, ainda aturdidos, surgiu um breve retrato do Brasil em que morreram. Três mulheres foram além, pincelando as sequelas nas famílias vitimadas, as incertezas e expectativas sobre o país no pós-pandemia. Seguem três histórias pelas vozes das sobreviventes Giovanna, Mayra e Katia.

Giovanna Gomes Mendes da Silva, 19 anos, era estudante em São Luís, agora é chefe de família maranhense. Perdeu pai, mãe e ficou com a irmã de dez anos:

“A minha mãe era transplantada e, até o dia em que ela conseguiu o rim, a gente tinha passado por uma tempestade. A gente passou muito tempo com esse sofrimento, não só ela, porque ela estando doente, toda família sofria, eu, meu pai, minha irmã e ela. Então, quando a gente pensava que teria uma vida normal, porque fazer hemodiálise, ter uma vida com alguém que faz hemodiálise não é normal, não é natural, veio essa outra tempestade que a gente não esperava, que é o covid (…)

Então, dois dias depois do falecimento da minha mãe, meu pai foi internado. E a gente não teve nem tempo de sofrer pela minha mãe, não é? Porque eu… Por exemplo, minha mãe tinha falecido há dois dias, e já tive que estar com meu pai no hospital, não tive nem oportunidade de chorar nem nada do tipo, porque eu não podia ficar chorando na frente do meu pai, não é? Eu tinha que passar que estava tudo bem, tinha que mostrar força, não é?

Giovanna Gomes Mendes da Silva, 19 anos, de São Luís, órfã da covid, perdeu a mãe e terá a guarda da irmã de dez anos
Giovanna Gomes Mendes da Silva — (Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Então, ele passou acho que foram 13 dias internado e veio a óbito também. Foi uma diferença de 14 dias do meu pai e da minha mãe. Quando meus pais faleceram, a gente não perdeu só os pais, a gente perdeu uma vida, não é? Uma vida de alegria…

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Eu costumo dizer que a gente vive uma vida de alegria com momentos de tristeza, uma vida normal, sempre tem alguma coisa assim, mas hoje a gente vive uma vida triste, com uma ou outra coisa que deixa a gente alegre (…)

[Precisa ter] também o apoio psicológico. Hoje eu e minha irmã temos psicólogo e psicopedagogo porque alguém se propôs a fazer gratuitamente, um amigo, mas a gente não teria se não fosse isso. Então, também é importante essa ajuda psicológica. E é isso. Como até a Constituição diz que crianças e adolescentes são prioridades absolutas no que diz respeito a políticas públicas, então, essas políticas que vocês [senadores] já citaram são o mínimo mesmo e são importantes.” #

Mayra Pires Lima, 38 anos, enfermeira, servidora pública no Amazonas, tinha um filho. Desde a morte da irmã em Manaus, em fevereiro, cria quatro crianças:

“Eu peguei covid duas vezes, cuidei da minha irmã internada em um dos hospitais de Manaus. Eu estava no 14º dia de tratamento e mal conseguia respirar, mas eu tive que levá-la para o hospital porque ela também não conseguia respirar.

Então, nós tivemos várias situações no Amazonas que poderiam ter sido resolvidas com um pouco de bom senso e um pouco de humanidade por parte dos gestores, principalmente porque vários conselhos de saúde, não somente da enfermagem, não somente da medicina, tentaram orientar os gestores (…)

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Hoje eu vejo que a minha irmã não sobreviveu não somente por culpa de uma pessoa, mas por causa de uma rede de culpabilidade que precisa realmente ser identificada, precisa ser resolvida essa situação.

Ano passado, nós tivemos muitos casos de óbitos de colegas, tivemos grávidas… Uma situação: onde eu trabalho, nós tivemos seis óbitos de gestantes em uma semana. E a gente sabe que, quando a gestante falece, muitas vezes os bebês vão junto, porque muitas vezes a gente não consegue resolver a situação.

Eu tive que levar minha irmã para o hospital, e todas as portas se fecharam. O único hospital que atendeu a minha irmã foi um hospital pronto-socorro de referência da Zona Leste de Manaus.

Em cinco dias de sintomas, na fase inflamatória da doença, ela precisava de UTI, e, infelizmente, a UTI demorou dez dias enquanto ela estava no hospital. O oxigênio, infelizmente (…)

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Mayra Pires Lima — (Pedro França/Agência Senado)

A cidade inteira estava doente. A cidade de Manaus virou um deserto. As únicas pessoas que andavam em Manaus eram os profissionais de saúde, a polícia e os serviços essenciais.

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Minha irmã faleceu no dia 10 de fevereiro, às 12h50. Dois dias antes, os filhos dela, os gêmeos, fizeram quatro meses de idade. E ela faleceu, deixando os dois órfãos, assim como tantas outras crianças em Manaus ficaram órfãs, desamparadas.

Graças a Deus, eu ganho razoavelmente bem, ainda que não ganhe bem como deveria, mas e as pessoas que não têm renda? E as crianças que muitas vezes não têm o que comer?

Graças a Deus, nós temos ONGs que ajudam essas crianças em Manaus, no Amazonas. Só em Manaus nós temos mais de 80 órfãos do covid; só da minha família, são quatro, são quatro crianças. E o que [no governo] estão fazendo? O que estão fazendo para olhar essas crianças? Como vai ser o futuro delas sem os pais, se elas não têm muitas vezes perspectiva? Os meus sobrinhos têm a nós. E as crianças que não têm família? O que se está pensando em fazer de política pública para resolver isso e dar um futuro para essas crianças?

Lá teve caso, na ONG que ajudo, em que a menina perdeu o pai, a mãe, a avó, todo mundo. Ela ficou sozinha com outras crianças menores. Será que a gente conhece essa história? Será que a gente realmente se preocupa com isso?

É difícil! Antes de eu adotar os bebês, eu tinha um filho e, agora, cuido de quatro crianças. Então, imaginem a mudança na minha vida total, não é? Hoje eu estou de licença por adoção, mas eu volto a trabalhar. E como é que vou cuidar deles se muitas vezes não tem esse amparo por parte do governo?” #

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Katia Shirlene Castilho dos Santos, perdeu os pais em São Paulo. Ela acompanhava a mãe internada na rede Prevent Senior, que recebeu o “kit covid” como tratamento, enquanto a irmã ajudava a enterrar o pai:

“Quando eu perdi os meus pais, eu me via como se eu estivesse num buraco. Eu me sentia só, vazia. Num lugar vazio, eu gritava, e era como se ninguém estivesse me ouvindo. E, depois que vocês criaram essa CPI, isso me aliviou bastante, porque a gente conseguiu descobrir quantas coisas aconteceram no nosso país. Através desta CPI, a gente conseguiu ver quantas coisas poderiam ser evitadas, quantas mortes poderiam ser evitadas, quantas tragédias poderiam ter sido evitadas. Faltou, na verdade, o trabalho do governo, que deveria ser mais sério, de tratar com mais seriedade toda essa pandemia (…)

Eu vou contar um pouco da minha história com os meus pais. Já fazia um ano que eu não via meus pais, por conta da pandemia (…) E, aí, faltando uma semana para o meu pai poder ser vacinar, porque não tinha vacina ainda, ele acabou contraindo o vírus. No dia 18 de março de 2021, a gente teve que levá-lo para o hospital público, e ele foi internado.

A última vez que eu vi meu pai foi quando a minha irmã, que estava acompanhando ele na internação, fez um vídeo para mim. A gente ainda estava achando que ele ia sair dali. E ficamos esperando por isso. Só que a minha mãe também contraiu o vírus. Infelizmente, ela também estava contaminada. Ela tinha o plano de saúde da Prevent Senior. Meu pai não tinha, mas ela tinha. Ela era associada já há 15 anos da Prevent Senior, e a gente tinha muita confiança nesse plano. Ela passou por alguns tratamentos de câncer, porque ela teve dois cânceres, mas conseguiu superar. Já fazia um ano que ela tinha tido alta.

E aí a minha irmã – eu ainda não tinha chegado [a São Paulo], eu só cheguei no dia 19 – fez a chamada de vídeo com a Prevent Senior, aquela telemedicina. Não fizeram nenhum exame com ela, e acabaram mandando o kit covid para ela. A gente recebeu esse kit covid, começamos a medicá-la, mesmo sabendo – porque a gente tinha algumas dúvidas sobre todos esses remédios – que não era eficaz. Mas como você vai falar para uma idosa de 71 anos, que confia no convênio, que aquele remédio que o médico mandou para ela, para cuidar dela, na cabeça dela, esse remédio não estaria fazendo nada?

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Nós começamos a dar o remédio para ela. Nesses dias eu já estava em São Paulo, já estava em 19 de março. Uma coisa para que a gente tem que chamar bastante a atenção é que eu estou falando de 2021. Nós não estamos falando de março de 2020, porque em março de 2020 ainda tinha muita dúvida – março, abril – com relação a como a gente iria combater essa pandemia, mas nós estamos falando de 2021. Então, nesse kit vinha hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina, colchicina, vitamina C com zinco, vitamina D e suplementos alimentares.

Começamos a fazer o tratamento e o meu pai continuava internado no hospital. Só que no dia 21 a gente percebeu que a saturação dela estava oscilando muito, chegando até a 88 (..) E a gente a levou, no domingo, ao hospital, nesse dia 21, à Prevent Senior que ficava na unidade da Mooca. Estava bem lotado o hospital, nós chegamos a ficar ali por volta de três horas para ser atendidos (…)

O médico, para nossa surpresa, não fez nenhuma tomografia, não fez nenhum exame mais profundo para saber como é que estava a situação dela. Inclusive, a minha irmã falou que gostaria que pedissem uma tomografia. Ele falou que o hospital da unidade da Mooca não estava separando só para atendimento covid, ele estava atendendo várias pessoas, e que a máquina de tomografia ali seria complicado usar, porque tinha outras pessoas lá dentro que não estavam com covid.

Aquilo a gente já achou bastante estranho, mas aí ele falou: “Olhe, se vocês quiserem esperar, vocês podem esperar, mas vai demorar por volta de umas três horas até conseguir higienizar tudo lá e tal”. E a minha mãe já estava há três horas na espera. Ele falou: “Olhe, resolvemos não fazer a tomografia”. Na verdade, ele não quis fazer, a gente que questionou. E a gente foi embora para casa. Isso já era quase meia-noite. Quando eu cheguei a casa, a minha mãe… Oscilou de novo a saturação dela (…)

Eu liguei novamente para a telemedicina, para ver como que eu poderia agir naquele momento, mas a médica que atendeu, inclusive, não foi muito receptiva e acabou falando que teria que voltar para o hospital. Eu falei: “Não tem como a gente voltar, porque eu acabei de voltar do hospital agora”. Minha mãe já estava muito cansada, a gente resolveu deixá-la descansando um pouco.

E tomamos a decisão de levar minha mãe logo cedo para o hospital novamente, na segunda-feira. E aí a gente a colocou no carro; depois, a gente a levou para o hospital (…) Nós a levamos até a unidade, de novo, da Prevent Senior na Mooca. Aí, sim, tiraram a saturação dela, estava baixa, fizeram os exames e viram que o pulmão dela estava 50% comprometido. Só que não tinha vaga no hospital. Nós ficamos aguardando, e a mãe conseguiu a transferência para a unidade de Pinheiros, o Sancta Maggiore, às 3h da manhã.

Katia Shirlene Castilho dos Santos, perdeu pai e mãe para a Covid em São Paulo. A mãe esteve internada na rede Prevent Senior e recebeu o
Katia Shirlene Castilho dos Santos — (Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Só que, nesse mesmo dia, segunda-feira, 22 de março, antes mesmo de a gente levar minha mãe para o hospital, a minha irmã recebeu uma ligação do hospital em que meu pai estava internado. Ela foi lá, e, infelizmente, a gente recebeu a notícia de que o meu pai havia falecido.

Nós não conseguimos nem viver o luto direito, porque a minha mãe já estava no hospital. Eu fiquei com a minha mãe, eu não acompanhei o sepultamento do meu pai. Ele acabou… Eu fiquei com a minha mãe no hospital, e a minha irmã providenciou todos os procedimentos para o sepultamento.

E, assim, pra gente… Pra piorar mais ainda – não é? –, naquele dia em que o meu pai faleceu, chegou a quase 4 mil mortos: foi o pico da segunda onda da pandemia. E a minha irmã teve que ir na funerária, com o carro da funerária – infelizmente ela passou por todos esses problemas –, porque, quando ela chegou lá no necrotério, não estavam encontrando o corpo do meu pai; eram muitos corpos, naquele necrotério, dentro dum saco preto. E o rapaz que estava lá, que era o responsável, pediu a ajuda dela ainda, pra ela procurar o corpo do meu pai; e ela saiu procurando o nome dele, ficou procurando, e via que tinha sacos maiores e menores.

Para quem não sabe, quem morre de covid é enterrado nu, dentro de um saco, sem direito a despedida nenhuma. Ela ainda teve que pegar esse corpo do meu pai, e o rapaz… Era tanto corpo, que ele falou: ‘Olha, eu preciso da sua ajuda’. E ela teve que colocar o corpo do meu pai dentro do caixão… E eles foram até o cemitério.

Chegando lá, o rapaz da funerária falou que, se não se importasse, ele teria que deixar o corpo do meu pai no chão, na terra, porque ele tinha muitos corpos ainda pra procurar e buscar. Só conseguimos fazer uma oração rápida de despedida do homem que ensinou a gente a ser as mulheres que somos hoje – não teve nem uma despedida digna. E eu tenho certeza de que isso não aconteceu só com o meu pai, isso aconteceu com muitos brasileiros.

A gente continuou, eu revezei com a minha irmãs lá, cuidando da minha mãe. Ela passou sete dias na enfermaria do hospital (…) O hospital estava muito cheio, a gente teve muitas dificuldades, a máscara dela escapava a toda hora, a do oxigênio; a saturação dela não melhorava. E ela pedia pra mim: “Filha, eu quero… Eu estou com sede, eu quero água”. E a enfermeira dizia que eu não podia nem tirar a máscara pra dar água pra ela, porque ela estava tomando a água espessa – que era espessada com um material que eles colocam pra deixar ela mais grossinha, pra não engasgar. E aí a enfermeira falou que a situação dela estava bem complicada, e eu peguei uma gaze e molhei a boca dela pra aliviar um pouco a sede dela.

Por isso é que eu falo que, quando a gente vê um presidente da República imitando uma pessoa com falta de ar, isso, pra nós, é muito doloroso. Se ele tivesse ideia do mal que ele faz pra nação, além de todo o mal que ele já fez, ele não faria isso.

A minha mãe piorou (…) Eu já comecei a desconfiar pela situação, que estava faltando leito na UTI, aí demoraram mais dois dias [para] levar a minha mãe para a UTI. Inclusive fizeram uso do medicamento flutamida [usado no tratamento do câncer avançado de próstata] para ela, mesmo sem o nosso consentimento, a gente não autorizou. E ali ela passou mais 26 dias na UTI. Ela passou por vários procedimentos e, infelizmente, no dia 26 de abril deste ano, ela nos deixou também.

Nós perdemos o nosso pai, a nossa mãe, os amores da nossa vida e isso me fez… A dor é grande, mas a vontade de justiça é maior, por isso que eu estou aqui hoje [na CPI]. Eu estou aqui hoje para representar essas várias famílias que passaram pela dor que passamos e é por isso que eu fico tão emocionada (…)

Aqui, este lugar, representa pra mim uma vitória, porque eu sei que a justiça vai acontecer, todos vocês vão conseguir estar fazendo a justiça com cada um, porque não são só números, são pessoas, são vidas, são sonhos, são histórias que foram encerradas por negligências, por tantas negligências e nós queremos justiça. O sangue dessas mais de 600 mil vítimas escorre nas mãos de cada um que subestimou esse vírus. A vacina é a única solução para vencermos.”

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