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Por Coluna
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Sangue do Meu Sangue

Acho (só acho) que entendi. Mas tenho certeza que me maravilhei

Por Isabela Boscov Atualizado em 12 jan 2017, 16h57 - Publicado em 2 dez 2016, 17h51

Sangue do Meu Sangue é um dos filmes mais enigmáticos que eu vi nos últimos tempos – daqueles em que, na última cena, você vira para a pessoa do lado e diz “ãããhhhhh?”. Mas isso, para mim, está longe de ser defeito. E, neste caso, vira qualidade mesmo: é tão magnífica a condução do grande Marco Bellocchio para a história (ou parte dela, ao menos), tão intrigante, arrebatadora e provocadora, que eu fiz uma das coisas mais deliciosas que se pode fazer numa sessão de cinema – eu simplesmente me deixei levar.

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O filme começa como uma nuvem carregada: Don Federico (Pior Giorgio Bellocchio, que é filho do diretor e um ator excelente), aristocrata do século XVII, chega ao convento da cidade de Bobbio, norte da Itália, para resolver uma emergência espiritual – seu irmão, que era padre no monastério, se suicidou, presumivelmente em razão da culpa de ter tido relações carnais com a noviça Benedetta (Lidiya Liberman). O diretor da ordem, padre Cacciapuoti (Fausto Russo Alesi), explica que a situação é gravíssima; o suicida será enterrado fora do campo santo, no cemitério dos animais – uma vergonha incancelável para a família –, a não ser que a linda Benedetta confesse tê-lo seduzido sob orientação do demônio. Nesse caso, a culpa pelo suicídio será de Satanás, não do suicida.

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Cacciapuoti, uma figura sinistra, com vocação de inquisidor, está determinado a provar que houve interferência demoníaca. Primeiro manda raspar a cabeça da noviça, para procurar nela a marca do demônio. Ordena que ela seja lançada em um lago, amarrada por correntes, e depois queimá-la com uma cruz em brasa. A cada evidência de que Benedetta é inocente, Cacciapuoti ordena uma nova prova de culpa, sempre mais extrema e cruel. E, a cada uma delas, mais as coisas esquentam, de um jeito esquisito, entre Don Federico e a noviça – esquentam tanto que até sobra um pouco para as duas beatas ajeitadas que o hospedam, e que Alba Rohrwacher e Federica Fracassi interpretam como criaturas algo fora deste mundo. É tudo tão estranho e evocativo que não soa nada fora de lugar, por exemplo, a versão para coro sacro de Nothing Else Matters, do Metallica, que acompanha uma cena.

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Na hora em que você está louco para saber onde tudo isso vai dar, porém, vem um tranco: Bellocchio corta para outra história, passada na mesma cidade de Bobbio, mas nos dias de hoje. Um fiscal da Receita (de novo Pier Giorgio) está intercedendo por um milionário russo que quer comprar o convento, agora em ruínas, para fazer dele um hotel de luxo. Todos com que eles conversam são extremamente evasivos; o convento é a toca do Conde (o estupendo Roberto Herlitzka), um velho que é, ou acredita ser, um vampiro. Há oito anos o Conde se tornou recluso. Às vezes sai à noite, e quem o vê acha que ele é uma aparição. Há outros vampiros (???) na cidade, também, e todos vão manobrar e obsfucar para impedir a venda do convento. Esse é um trecho desconfortável do filme: tem um tom de sonho exagerado, e às vezes de pastelão mesmo, que assenta mal depois da história tão sombria e sensual do século XVII.

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A questão que Bellocchio provoca, porém, é: qual a relação entre as duas histórias? Ela é direta, causal? Até onde eu possa ver, não. Vou dar uma viajada aqui – mas uma viajada, digamos, criteriosa. Bellocchio está com 77 anos e, na última década e meia, recompôs sua energia de forma aparentemente inesgotável. Quase sempre, ele tem dirigido essa energia contra o poder coercitivo – contra a armadura ideológica dos terroristas das Brigadas Vermelhas em Bom-Dia, Noite (2003), ou contra a construção épica que o ditador fascista Benito Mussolini fez de si mesmo em Vincere (2009), ou ainda contra o furor que se formou na Itália entre facções opostas quando uma mulher em coma havia 17 anos teve os aparelhos desligados, em A Bela que Dorme (2012).

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As aproximações que Bellocchio faz em seus filmes entre fé ideológica e fé religiosa não são acidentais; são perfeitamente deliberadas, e miram sempre na natureza obscurantista de toda doutrina: o medo que elas têm do belo, do erótico, do livre, do flexível, e o empenho com que procuram aniquilar essas manifestações que possam ameaçar sua ordem. As doutrinas – sejam políticas, sejam religiosas ou de qualquer outra natureza – são forças destrutivas, confinantes e regressivas, argumenta Bellocchio (e eu concordo), com a propriedade de um pensador que nasceu e se formou no palco onde algumas batalhas monumentais se travaram: a Itália que foi um berço da civilização clássica, e do seu culto à beleza da forma e do pensamento humanos; que se tornou a sede de uma doutrina que instituiu que o humano é imperfeito (e o feminino é torpe), e a beleza só pode ser divina; de onde parte do avanço fascista irradiou para o mundo, onde as Brigadas perpetraram seus desatinos violentos, onde Berlusconi brincou de bunga-bunga – e onde, apesar de tudo isso, a beleza ainda brota continuamente, e onde pessoas como ele próprio criam coisas extraordinárias.

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Dito isso, acho que a relação entre as duas partes de Sangue do Meu Sangue está aí. O ódio com que Cacciapuoti busca destruir Benedetta, e a omissão de Federico diante dessa destruição, são uma forma desse ataque ao belo. O passadismo do Conde, a maneira como ele e seus colegas vampiros se aproveitam dos benefícios públicos, a estridência dos moradores atuais de Bobbio e do milionário russo – eles constituem a forma moderna de destruição, por meio da vulgaridade e da inação. A primeira é uma forma ativa de ignorância; a segunda, uma forma passiva. Mas ambas são a mesma coisa, e o resultado delas é o mesmo também.


Trailer

SANGUE DO MEU SANGUE
(Sangue del Mio Sangue)
Itália/França/Suíça, 2015
Direção: Marco Bellocchio
Com Pier Giorgio Bellocchio, Lidiya Liberman, Fausto Russo Alesi, Roberto Herlitzka, Alba Rohrwacher, Federica Fracassi, Fillippo Timi, Ivan Franek
Distribuição: Fênix Filmes

 

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