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Onde os Fracos Não Têm Vez

Por Isabela Boscov Atualizado em 11 jan 2017, 15h59 - Publicado em 30 out 2008, 19h59

Cínicos, mas com uma pontinha de fé

Em Onde os Fracos Não Têm Vez, os irmãos Coen mostram a brutalidade para falar de compaixão

Da mesma forma que em Fargo, o grande filme da carreira dos irmãos Joel e Ethan Coen, em Onde os Fracos Não Têm Vez existe um lar que é um santuário. Lá fora, porém, está o horror – na forma de cadáveres crivados de balas e espalhados pelo deserto, uma fortuna que está perdida mas certamente tem dono, drogas que atravessam a fronteira entre o México e o oeste do Texas, ganância, corrupção e uma indiferença abissal pela vida humana. Lá fora está, principalmente, um homem que personifica todo esse horror: Anton Chigurh, assassino por ofício e por vocação que, numa caracterização típica do humor dos Coen, arruma os cabelos como uma dona-de-casa dos anos 50. A incongruência do penteado, ainda mais como moldura para os traços de boxeador do espanhol Javier Bardem, é uma dessas manifestações da veia simultaneamente cômica e perversa dos Coen, que faz muito por colocar seus filmes no centro das atenções. Os resultados são estupendos: entre nomeações e vitórias, Fracos acumula 82 menções nas principais premiações do último ano, incluindo a Palma de Ouro em Cannes e oito indicações ao Oscar. Bardem, sozinho, responde por catorze dessas nomeações.

Não que esse número reflita com precisão o valor real do filme. Como o indestrutível e infalível Chigurh, Bardem se tornou o rosto de Fracos. Sua alma, porém, é Josh Brolin, no papel do soldador Llewelyn Moss, que acha uma mala com 2 milhões de dólares perdida durante uma carnificina no deserto e vê nela a chance de transformar sua vida desapontadora. E o coração do filme está em outro lugar ainda – em Tommy Lee Jones, o xerife que, na trilha tanto do assassino como do ladrão acidental, constata com um misto de perplexidade e resignação que sempre há mais o que ver no mundo, e que isso não é necessariamente bom. Anton Chigurh é uma charada ao mesmo tempo apavorante e divertida, e Bardem crava os dentes com gosto no papel. Mas, sem esses outros personagens, um tão desesperado e o outro tão desiludido, e sem a veracidade com que Brolin e Jones os interpretam, Fracos não passaria de um exercício de estilo (no qual, aliás, os irmãos se revelam cada vez mais virtuosísticos). Da primeira à última cena, ambas belíssimas, eles é que funcionam como o diapasão do filme; Bardem é apenas seu refrão.

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Onde os Fracos Não Têm Vez é adaptado do romance homônimo de Cormac McCarthy, conhecido pelos seus westerns modernos. Ou melhor, pós-modernos, já que costumam tratar de personagens que tentam emular o velho modo de vida da fronteira num tempo em que os seus valores clássicos já foram subvertidos. Nada mais de honradez e hombridade; do faroeste, sobraram neles só a poeira e um ou outro cavalo. É contra essa paisagem que os Coen abrem o filme. Enquanto a câmera percorre vistas áridas, ouve-se Tommy Lee Jones ponderando sobre a nova ordem do Oeste – sobre como muitos dos xerifes da antiga nem sequer carregavam armas, contando com o poder de fogo de sua autoridade moral. Ed Tom Bell, o personagem de Jones, tem autoridade moral (e há que ser um ator superlativo, como ele, para transmiti-la de maneira tão absoluta), mas o que ele está lamentando em sua narração é que obviamente ela já não basta. Nem aliada às armas, aliás, pode conter homens como Chigurh. Com prudência, os irmãos Coen podam por aí os filosofismos típicos de Cormac McCarthy, trocando-os por imagens de precisão admirável e pelo seu costumeiro senso do absurdo. Por onde o assassino passa, por exemplo, ele topa com algum desavisado que se comportará com inocência inata – e que quase sempre pagará caro por ela. Na visão do autor, a decência é uma retardatária na marcha da história, e está fadada a ser atropelada. Na visão mais mundana e também mais arguta dos Coen, a solução estaria em salvaguardar o que for possível desses valores em desaparecimento. No caso, isso significa que Ed Tom Bell quer capturar Chigurh, porque ele não pára de matar. Mas quer mais ainda impedir que Llewelyn venha a se contar entre as vítimas do assassino. Llewelyn não é honesto, mas está longe de ser nocivo; é estúpido porque se acha esperto; tem uma mulher tão tola quanto ele, mas que não merece ficar viúva por isso; e é alguém que o xerife conhece. Na verdade, algo que o xerife conhece – um marginal que quer a própria vantagem, não a destruição alheia.

Como a policial interpretada por Frances McDormand em Fargo, o xerife de Jones é o centro moral de Fracos. Não porque eles pertencem à lei, mas porque representam a compaixão e a preservam mesmo em face da brutalidade. Quando finalmente se recolhem junto à família (a forma como ambos os filmes se encerram), estão mais amargos, porém não mais duros. Para cineastas descritos como cínicos, vê-se então que os Coen têm um bocado de fé num certo modelo de humanidade – uma convicção infinitamente mais complexa e interessante do que a idéia de um homem que é o mal puro e simples. Anton Chigurh, o personagem em preto-e-branco, é que atraiu tantos prêmios para Onde os Fracos Não Têm Vez. Mas é com os tons de cinza de Ed Tom Bell e de Llewelyn que o filme ganha vida.

Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 30/01/2008
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2008

ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VEZ
(No Country for Old Men)
Estados Unidos, 2007)
Direção: Joel e Ethan Coen
Com Josh Brolin, Tommy Lee Jones, Javier Bardem, Woody Harrelson, Kelly McDonald, Garrett Dillahunt

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