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Alguns fatos e dados trazidos de dentro da Amazônia

Em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, nos Estados Unidos, o presidente Jair Bolsonaro amplificou polêmicas no Brasil e no mundo

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 27 set 2019, 11h42

Bolsonaro, quero te contar uma coisa. Há várias verdades sobre a Amazônia dentro da maior floresta tropical do mundo. Ela ocupa quase 50% do território do Brasil e se espalha por outras oito nações. A depender das diferenças entre cada local, o que é imperativo para um pode ser totalmente equivocado para outro. Contudo, alguns fatos são apenas fatos. A Amazônia não permanece praticamente intocada. De acordo com dados do MapBiomas, plataforma que monitora por satélite a cobertura vegetal, a Amazônia perdeu 14,4% de sua vegetação nativa. Em 1985, apenas 3% do território havia sido alterado. Mesmo se ignorarmos os dados de satélite da plataforma que usa a mesma tecnologia que o governo Bolsonaro quer contratar, da empresa norte-americana Planet, imagens feitas em solo mais do que evidenciam as práticas ilegais de queimadas e desmatamento.

Inclusive, vi com meus próprios olhos. No fim de agosto, fui a Colniza, no Mato Grosso, para investigar o que aconteceu no estado que estava liderando o ranking de queimadas no Brasil. Vale destacar que o Mato Grosso é o único que abrange três biomas: Amazônia, Cerrado e Pantanal. Naquele mês, o aumento de focos de calor foi de 83% em comparação ao mesmo período do ano passado. Não foram ações de povos indígenas e comunidades tradicionais (como fez questão de pontuar o presidente em seu discurso) que fizeram disparar os alertas.

O mais marcante durante os dias em que exploramos as áreas destruídas foi a sensação de estar em meio a uma hecatombe ambiental. Ironicamente, a origem da palavra ‘hecatombe’ está na Antiguidade e faz referência ao sacrifício de cem reses, principalmente bovinas, aos deuses da Grécia Antiga. Nos tempos modernos, o massacre é de árvores, plantas, insetos e animais que vivem na floresta. Ao invés de servirem a ídolos contemporâneos, enriquecem criminosos — pistoleiros, madeireiros, garimpeiros e ruralistas que agem na ilegalidade. Para fechar o ciclo da tragédia, as áreas sacrificadas costumam ser ocupadas por centenas de cabeças de gado.

Ao ficar em pé e olhar de um lado para o outro, tudo o que havia no horizonte era o cinza de biomassa incinerada. Mesmo onde a queimada já havia cumprido com o seu papel de transformar o verde em cinzas, faíscas e pequenas flamas continuavam a reagir ao oxigênio, sob o calor de quase 40 graus, e a se alimentar de restos de folhas e galhos secos. O silêncio só não pode ser descrito como absoluto porque as fagulhas ainda estalavam.

Dentro desse habitat inóspito, o ar é denso. A respiração vem carregada de algo que não é a poluição de São Paulo, e muito menos a umidade da floresta tropical. O ar também não carrega a secura do Distrito Federal em tempos de estiagem. É uma mistura da emissão dos gases liberados na queimada, como o monóxido de carbono e o metano, com o cheiro de apodrecimento do que ainda resiste de matéria orgânica.

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Enquanto os sentidos do corpo absorvem e se adaptam às consequências de um conflito, o racional do cérebro percebe que o local é a cena de um crime. Aquele é o ambiente de faroeste amazônico, a verdadeira terra sem lei. No local onde fomos, não havia cobertura de telefonia e muito menos algum sinal de wi-fi. O melhor dos mundos para quem não quer ser encontrado. Durante a reportagem, acompanhamos uma equipe do Ibama que procurava os responsáveis pelas queimadas e que foi escoltada pela Polícia Militar. “Deixa que a gente vai na frente, nunca se sabe o que podemos encontrar”, disse um dos oficiais armados. Em todos os terrenos incendiados, casas de madeira, estrategicamente protegidas para não serem engolidas pelo fogo, foram trancadas. Não havia sinais de vida humana além de ferramentas de pecuária deixadas para trás, junto a cachorros, porcos e galinhas.

Quando conversamos com um ambientalista que protege a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, área de proteção ambiental vizinha à região queimada, ele foi categórico: “muita gente já morreu nessa estrada”. O Brasil é um dos países que mais mata defensores do meio ambiente. Em 2017, 57 pessoas foram assassinadas, o que colocou o país em primeiro lugar no ranking daquele ano. Em 2018, o número caiu para 20 homicídios e agora ocupa a quarta posição, atrás de Filipinas, Colômbia e Índia. A relação entre desmatamento e queimadas é mais uma dentro da série de crimes que são cometidos onde não há presença do Estado.

Além da insanidade negacionista em relação aos problemas que ameaçam a floresta, o presidente voltou a falar sobre as riquezas minerais de terras indígenas, como a Ianomâmi e a Raposa Serra do Sol. Por sorte, há questões que vão além das vontades de um ou outro governo. Os direitos dos indígenas estão garantidos na Constituição. Em 2017, fui a Altamira, no Pará, investigar a possível instalação da mineradora canadense Belo Sun, que pretendia explorar ouro. As Terras Indígenas Paquiçamba e Arara da Volta Grande do Xingu, ambas prejudicadas pela construção da Usina de Belo Monte, poderiam ser impactadas pelo empreendimento. Além dos indígenas, cinco vilas de povos ribeirinhos, que juntos somavam 1 320 habitantes, estavam à espera de decisões da justiça. A região se desenvolveu com a abertura de três garimpos ilegais – Ouro Verde, Galo e Ressaca — que exploravam e roubavam riquezas minerais de terras da união.

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A vida nos garimpos, para mim, foi uma das principais ilustrações sobre até onde pode chegar a miséria humana. Esgoto a céu aberto, comércio pautado pelo valor do ouro que já não circulava mais, dependência de um sistema clandestino de geração de renda, exploração de mão de obra em condições extremamente degradantes de trabalho e a falta de presença do Estado. Pessoas abandonadas à própria sorte. Durante essa mesma reportagem, em um percurso entre Altamira e Senador José Porfírio, também caminho para o município de Anapu, onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada em 2005, alguns veículos estavam parados na beira de uma estrada de terra que margeava uma área de floresta. Pela insensatez do espírito da reportagem, saímos do carro para ver se havia algo de interessante ali.

Um grupo de homens estava desmatando a área. Ao perceberem a nossa aproximação, a primeira pergunta que nos fizeram foi: vocês são do Ibama? Mesmo com a nossa negativa, o eles não se tranquilizaram e afirmaram que eram pistoleiros, em tom de ameaça. Apenas dois anos depois, na mesma viagem que fizemos a Colniza, agentes do Ibama contaram casos em que foram recebidos com desdém por criminosos. “O Ibama ainda existe?”, foi o que ouviram de um fazendeiro que estava sendo autuado por desmatamento e queimada ilegais.

A Amazônia é um lugar selvagem por definição. Mas a lei da selva que deveria predominar é a da natureza, da fauna e da flora, dos povos que vivem de caça e pesca para a subsistência. Nas últimas décadas, alguns seres humanos impuseram uma lógica bestial de destruição sem limites e a opressão de homens e mulheres mais pobres e vulneráveis. Existe outra lei que precisa urgentemente ser sobreposta a tais regras brutais. A lei do Estado, do desenvolvimento econômico sustentável, de uma política estratégica para efetivamente melhorar a condição de vida dos habitantes da Amazônia. Vociferar em prol da soberania nacional não reduzirá a miséria. Igualar práticas criminosas a “problemas que todos os países têm”, como declarou o presidente, é, para dizer o mínimo, irresponsável.

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