Philip Roth cancelado?
O legado do escritor genial está garantido. O pequeno surto de moralismo em torno de suas obras diz respeito a uma marca de nosso tempo
Roth morreu em 2018. Foi um escritor genial. A publicação de sua biografia foi agora cancelada. Blake Bailey, seu autor, é acusado de abuso sexual. “Seu legado como escritor pode estar comprometido”, leio em um artigo. Eu me pergunto o que teria a ver a conduta pessoal do biógrafo com a obra do biografado, sem obviamente resposta nenhuma.
O caso de Bailey é a cereja do bolo. A obra de Roth parece ter realmente entrado em colisão com a retórica identitária. A escritora Meg Elison diz que ele era um misógino. O campeão de toda uma “geração incrivelmente misógina de autores americanos”. Que a forma como retratou a mulher, em seus livros, é cheia de preconceitos. Quando li sua trilogia em torno de Nathan Zuckerman encontrei uma multiplicidade de tipos femininos. E uma sátira por vezes brutal de si mesmo. Não sei exatamente de que mulheres Elison se refere, mas suspeito que ela saiba qual é o jeito certo de retratar uma mulher em uma novela.
O caso de Roth é apenas um sinal. Há muitos por aí. Um deles é o de J.K. Rowling, criadora de Harry Potter. Seu mais recente livro conta a história de um detetive particular, Cormoran Strike, investigando um assassino em série que se veste de mulher para matar. Não deu outra. Se Roth era misógino, Rowling é transfóbica. A crítica Jake Kerridge disse que a moral do livro parecia ser “nunca confie em um homem de vestido”. A vantagem de Rowling é que ela está viva para se defender.
Há certo ridículo em culpar um escritor pelos pecados de seus personagens. E não propriamente novo. Flaubert foi processado pelos pecados de Madame Bovary. Acusado pelo estereótipo que fez de uma mulher francesa que nem sequer amar a seu marido havia tentado. Detalhe: estávamos em 1856. Quase dois séculos depois, sob outra régua moral, é o que se passa com Roth e Rowling. Por agora não houve nenhum processo formal. O tribunal é formado por uma infinidade de pequenos juízes nas redes sociais.
O legado de Roth e Rowling está garantido. O pequeno surto de moralismo em torno de suas obras diz respeito a uma marca de nosso tempo, negada por uns, acentuada por outros, que é a cultura do cancelamento. Seu pano de fundo é a imposição do silêncio pela gritaria. No lugar do dissenso, a certeza moral. Tradução moderna da multidão, na praça, diante da bruxa prestes a ser queimada. A diferença é nossa higiene. Ninguém morre e não há cheiro de carne queimada. Explodem-se apenas reputações, e a vida segue.
John Stuart Mill, em seu On Liberty, de 1859, já havia antecipado o problema. “Nossa intolerância social não mata ninguém”, mas “induz as pessoas a disfarçar”, produz uniformidade, danifica a “coragem moral”. Em especial quando mexe no bolso de pessoas. Vai aí um aspecto-chave. Cancelamentos são feitos para produzir não apenas dano reputacional, mas também econômico. Perda do emprego, clientes, financiadores, editores, anunciantes.
O tema está longe de atingir apenas personalidades públicas. Yasha Monk conta a história de Emmanuel Cafferty, um sujeito pacato de San Diego fotografado supostamente fazendo um gesto racista que combina o sinal de “o.k.” com três dedos em forma de “w”. A partir daí, a via-crúcis. Foto no Twitter e a horda histérica pedindo punição. E logo a demissão. Cafferty tem origem mexicana, nenhum histórico de preconceito e diz que apenas estalava os dedos. Seu caso sinaliza uma doença de nossas democracias: a conversão de causas meritórias (o combate ao preconceito) em um novo tipo de fanatismo, igualmente movido a preconceitos. Cafferty parecia branco, dirigia uma caminhonete e tudo se deu após o assassinato de George Floyd. Por que não seria um supremacista?
“O pano de fundo é a imposição do silêncio pela gritaria e a certeza moral”
O ponto de Monk é não punir inocentes, mas é preciso ir além. Um grupo de acadêmicos tentou cancelar Steven Pinker por tuitar pesquisas inconvenientes e apoiar tipos como David Brooks em alguma polêmica. Não importa muito o motivo. O ponto não era a inocência, mas a divergência de opinião. A par disso há o erro. O dia ruim, o dito mal colocado. Pessoas que não podem errar arriscarão pouco, evitarão estudos politicamente desagradáveis e tenderão a ajustar sua linguagem não ao que manda a maioria (o que já seria um problema), mas a minorias capazes de fazer valer sua própria agenda, seja qual for, na gritaria.
Há um tipo de jogo aí. O cancelador pertence à multidão. Seu custo de punir é baixo, ele sinaliza virtude, em regra na condição do ofendido, e de quebra ganha um punhado de likes. Há um lado Black Mirror nisso. Vale rever Hated in the Nation, de 2016. A cada dia alguém é escolhido e eliminado por uma nuvem de abelhas. Na ficção, o sujeito morre de verdade. Na vida real, mata-se apenas sua pessoa pública.
O maior problema disso tudo talvez seja jogar no mesmo balaio pessoas que realmente agiram de modo inaceitável, e merecem repúdio, e quem simplesmente não agiu segundo o padrão definido por um grupo hegemônico. Há quem diga que é impossível fazer essa distinção. Discordo. Apesar de nossa involução recente, seres humanos ainda são dotados de algum senso de proporção.
Foi nessa linha que um grupo de intelectuais, de Chomsky a Deirdre McCloskey, assinou uma carta pública criticando a atual onda de intolerância e sua tendência de “diluir temas complexos em certezas morais fáceis”. Sugerem que ainda é possível o “desacordo em boa-fé”, e que a melhor forma de refutar ideias ruins são a “persuasão e o argumento”, não a imposição do silêncio.
Confesso um certo pessimismo. Keith Stanovich identificou o Myside Bias como definidor de nossa cultura digital. Cultura de “especialistas na própria opinião”. Dado que eu penso de um certo jeito e tem uma tribo gigante do meu lado, vamos em frente. Danem-se os valores liberais da tolerância. Dane-se a ideia de que as pessoas podem errar, perdoar, mudar atitudes e mesmo aprender alguma coisa com os outros.
Frank Furedi, o sociólogo do medo, dá uma resposta diferente e mais áspera. Sugere que os heróis do dia podem não passar de caricaturas logo mais adiante. “Não penso que Philip Roth será esquecido”, diz ele, e “muito tempo depois que #MeToo tiver se tornado uma nota de rodapé, na história de nosso narcisismo, as pessoas ainda vão experimentar aquele frescor inconfundível que surge de sua leitura.”
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741