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Os requintes do czar

A execução de Nicolau II e sua família, cem anos atrás, também acabou com uma era de luxo e bom gosto na Rússia

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 30 jul 2020, 20h25 - Publicado em 19 jun 2018, 13h46

A riquíssima história e tradição da Rússia se refletem em uma culinária diversificadíssima. O mundo ocidental se assombrou com sua opulência quando a conheceu dois séculos atrás. A variedade da cozinha russa se espalha em um território com 17 milhões de quilômetros quadrados, o dobro do Brasil, que transformam o país no maior do planeta, habitado por 144 milhões de habitantes, fracionados em oitenta etnias. Para o mundo ocidental, entretanto, a cozinha russa tem como referência a mesa majestosa do império proclamado em 1721 pelo czar Pedro I, o Grande. Ele procurou criar uma nação, fundou uma nova capital chamada São Petersburgo, mais tarde conhecida como a “janela da Rússia para a Europa”, e promoveu reformas carregadas de influência forasteira.

Pedro, o Grande, foi sucedido por 14 imperadores e imperatrizes. O último czar (título derivado da palavra latina caesar) terminou o reinado com a Revolução Russa de 1917, quando os bolcheviques, integrantes do partido comunista liderado por Lenin, obrigaram Nicolau II a abdicar e o aprisionaram com a família. Levaram o grupo em via-sacra, em regime de prisão domiciliar, transferindo-o para cativeiros cada vez mais humilhantes, até a derradeira Casa Ipatiev, em Ecaterimburgo, cidade nos Montes Urais, nestes dias a mais distante das 11 sedes da Copa do Mundo de 2018, pois se localiza a 1784 quilômetros de Moscou.

Ali, o último czar e sua mulher, o filho a as quatro filhas do casal, o médico da família imperial, um servidor pessoal, a camareira da imperatriz e o cozinheiro foram trucidados na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918. Alguns receberam tiros, outros golpes de baioneta. Portanto, completa-se no mês que vem o centenário da  barbárie. Demolida a Casa Ipatiev em 2003, “para evitar as peregrinações dos saudosos do regime czarista”, ergueu-se no lugar a Igreja do Sangue em Honra de Todos os Santos Resplandecente na Terra Russa.

Nicolau II não foi um governante exemplar, algo que evidentemente não explica a selvageria do seu assassinato. O historiador norte-americano Richard Edgar Pipes, especializado em história da Rússia, sobre a qual escreveu vários livros, achava que a deposição do czar aconteceu “por ele revelar inteligência limitada e vontade fraca”. Faltou-lhe, de fato, o pulso forte. Não tomou medidas fundamentais para enfrentar o colapso econômico, financeiro e político no qual se encontrava a Rússia. Deixou-se desmoralizar por tolerar o convívio de personagens funestas, como o místico Grigoriy Rasputin, que se aproximou da sua família e se tornou uma figura politicamente influente no ocaso do czarismo.

Apesar da timidez, porém, Nicolau II participava das conversas nas refeições solenes, orgulhava-se da fluência no francês, alemão e inglês, de dançar com elegância, de cavalgar e atirar bem, de praticar esportes. Também adorava a pompa, embora sem os excessos dos antecessores. A partir de 1903, devido à crise que assolava o país, parou de oferecer à aristocracia os bailes monumentais para cerca de 3.000 pessoas, no Palácio de Inverno, em São Petersburgo, a capital dos czares. A aristocracia o acompanhou limitando as festas particulares, os concertos, as óperas e os balés. Mas o refinamento continuava.

À mesa, Nicolau II manteve a complexa etiqueta dos antecessores. Na cozinha, localizada em prédio à parte, mas ligada ao palácio por um túnel, apinhavam-se cozinheiros, confeiteiros e padeiros hierarquizados como um exército. Se havia muitos convidados, os alimentos eram preparados, cortados, decorados e enviados ao salão de refeições. Compunham-se de 8, 9 ou 10 pratos que deviam chegar ainda quentes e apetitosos, se fosse o caso. Os garçons saiam da cozinha como soldados de uma brigada  da infantaria. A comida era apresentada aos convidados, que se serviam diretamente. O derradeiro chef de Nicolau II se chamava Ivan Kharitonov, aquele que tombou ao seu lado em Ecaterimburgo.

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O czar preservou inclusive o critério da antiguidade dos garçons. Só os profissionais mais velhos serviam a família imperial. O garçom que atendeu Nicolau II durante muito tempo enxergava tão mal que, ao servir-lhe a bebida, o czar precisava guiar a sua mão para acertar o copo. Nunca se cogitou substituí-lo. Nos últimos dias de cativeiro, como os mantimentos regulados, o cozinheiro elaborava para Nicolau II um singelo mingau de trigo sarraceno, do qual aliás ele gostava muito, e chá com o leite. Em seu diário, a czarina registrou uma raridade: “Kharitonov preparou pierogi com a carne”. Referiu-se aos pasteizinhos de massa cozidos e depois assados ou fritos, tradicionalmente recheados com carne moída, batata, chucrute, pescado ou queijo, originários do leste europeu.

Todas as pessoas executadas em Ecaterimburgo foram canonizadas pela Igreja Ortodoxa Russa a ano 2000. O czar ascendeu à glória dos altares com o nome de São Nicolau. A cerimônia transcorreu na Catedral de Cristo Salvador, de Moscou, o templo de cinco cúpulas douradas onde são celebradas as principais solenidades religiosas do país. Finalizada a liturgia, realizou-se um banquete no qual foram preparadas as sopas favoritas de Nicolau II, com a presença do clero e de convidados especiais.  Em 2008, a Suprema Corte da Rússia reabilitou oficialmente o czar e sua família.

A sopa era uma predileção que unia o imperador à culinária tradicional da Rússia. Nenhuma outra cozinha do mundo se revela tão rica nessa preparação. Os russos a consomem após os zakouski, antepastos frios e quentes, que vão das saladas de carne ou de batata, às verduras e aos embutidos, aos ovos de vários tipos, aos cogumelos marinados, ao arenque defumado e ao peixe idem ou marinado. Seguem-se os blinis, panquecas abertas cobertas por caviar ou salmão, geralmente acompanhadas de smetana, smitane ou smétane, o creme de leite azedo. Outro clássico: os pierogi mencionados no diário da czarina. Há também os palmeni, pastéis cozidos de origem mongol, que lembram vagamente raviólis.

Segundo os russos, a sopa atiça o apetite. No passado, eles desconheciam a palavra. Batizavam a preparação conforme o ingrediente usado. O termo sup, derivado do francês soupe, foi usado pela primeira vez no reinado de Pedro, o Grande. O frio rigoroso e a disponibilidade de cereais favorecem a multiplicação das receitas. A mais popular se chama bortsch, cuja paternidade é reivindicada pelos ucranianos, difundida também entre lituanos, poloneses e romenos. Os linguistas acreditam que a palavra vem de bochtshevik, nome antigo da beterraba, seu ingrediente clássico.

Outra sopa importante é a kasa, à base de semolina ou de milho, flocos de aveia, cevada e diferentes cereais. Existe ainda a czernina, finalizada com um ingrediente rejeitado por muitos paladares ocidentais: sangue fresco de pato, ao qual se adiciona vinagre de sidra para evitar a coagulação, igualmente apreciada na Lituânia e na Polônia. Outras sopas populares são a de repolho, a de couve fermentada e a ucha, de pescado.

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A cozinha da Rússia começou a ser conhecida na Europa Ocidental no início do século XIX, depois da derrota final de Napoleão Bonaparte, na sua invasão do país, em 1812, cuja importância ressalta na obra “Guerra e Paz”, de Leon Tolstoi, e na obra orquestral “Abertura 1812, de Tchaikovsky. Aristocratas russos que derrotaram o imperador francês, passaram a frequentar Paris com regularidade. Ao mesmo tempo, contrataram para trabalhar no seu país chefs do nível de Antonin Carême, o cozinheiro parisiense conhecido como “chef dos reis e o rei dos chefs”. Desse modo, a cozinha russa recebeu influência francesa. Vitoriosa a Revolução de 1917, muitos se exilaram em Paris, levando seus hábitos alimentares e propagando o consumo de maravilhas gastronômicas como os blinis coroados pelo legítimo caviar do Mar Cáspio. Não por acaso, a capital francesa tem hoje os melhores restaurantes de cozinha da Rússia.

No Brasil, conhecemos poucos pratos daquele país, porém marcantes. São, por exemplo, os morangos à Romanov, nome da família de Nicolau II, com a fruta macerada em açúcar, suco e raspas de laranja, licor Curaçau ou Grand Marnier, kirsch ou vodca, a seguir dispostas em camadas numa taça transparente, entremeadas por chantilly aromatizado com essência de baunilha; o frango à Kiev, no qual o peito desossado da ave é recheado com manteiga gelada, ervas e suco de limão, empanado na farinha de trigo, em ovos batidos e no pão ralado, fritando depois e terminando no forno; e o stroganov, stroganoff, strogonoff ou estrogonofe, que já virou quase um prato nosso.

Sua receita original foi publicada na Rússia em 1861, no livro ”Um Presente Para Jovens Donas de Casa”, de Elena Malokhovets, de São Petersburgo. Chamava-se carne stroganov com mostarda. Constituía-se de cubos de carne bovina fritos na manteiga, ao molho de farinha de trigo dourada na manteiga, diluída em caldo de carne e temperada com mostarda, pimenta-da-jamaica e sal; finalizava com smetana, smitane ou smétane. No final do século XIX, o cozinheiro francês Thierry Costet, que trabalhava para a família Stroganov, de São Petersburgo, berço da receita, deu-lhe retoques importantes: incorporou cebolas e champignons. Assim a enciclopédia francesa “Larousse Gastronomique” registrou o prato em 1938, mandando usar filé mignon ou contrafilé em tiras. Além disso, chamou-o de boeuf stroganov. No Brasil, hoje se utiliza carne de boi ou galinha em tirinhas ou cubos, ou camarão inteiro, ao molho de creme de leite e ketchup. Leva um pouco de cognac ou vinho, eventualmente bacon frito e incorpora ou não champignons.

Nicolau II era apreciador de champagne, como seu avô Alexandre II, para o qual a maison francesa Louis Roederer, de Reims, criou uma marca especial da bebida. Ele queria algo exclusivo. Pediu garrafas de champanhe que se diferenciassem das demais. Roederer escolheu o cristal claro. Outra versão diz que Alexandre II solicitou a garrafa de cristal claro para ser impossível envenená-lo com substâncias sólidas ou artefatos explosivos colocados dentro dela. Roederer criou o Champagne Cristal, que encantou os fãs igualmente pelo refinamento da bebida e a condição de ser o primeiro Cuvée Prestige (safra única e excepcional) do mundo.

A partir de então, todas as recepções na corte imperial russa a serviram prodigamente. Conta-se que tanto Alexandre II, como seu filho Alexandre III e o neto Nicolau II mandavam quebrar as garrafas moldadas em precioso cristal Baccarat após esvaziá-las. Desde 1945, por uma questão de custo, elas passaram a ser de vidro. O fato é que a Revolução de 1917 não derrubou apenas o czarismo: ao mesmo tempo em que quase quebrou Roederer, pela perda do principal cliente, extinguiu uma era de luxo e bom gosto jamais vista na Rússia.

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CARNE STROGANOV COM MOSTARDA

(Receita original russa publicada em 1861 por Elena Malokhovets, de São Petersburgo)

 

Rende 4 porções

 

INGREDIENTES

.1 kg de carne macia, sem gordura

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.4 colheres (sopa) de manteiga

.2 colheres (sopa) de farinha de farinha de trigo

.3 copos de caldo de carne

.1 colher (sobremesa) de mostarda de boa qualidade

.1 xícara (chá) de smetana (creme de leite azedo)

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.Sal e pimenta-da-jamaica a gosto

 

PREPARO

1.Duas horas antes de servir, corte a carne em pequenos cubos e salpique com sal, pimenta-da-jamaica e reserve.

2.Pouco antes de colocar na mesa, aqueça em uma panela duas colheres da manteiga.

3.Junte a farinha de trigo aos poucos, mexendo em fogo baixo, até ficar levemente dourada.

4.Dilua com o caldo de carne, sempre mexendo e introduza a mostarda.

5.Reduza um pouco no fogo e passe pela peneira.

6.Em uma frigideira, frite a carne na manteiga que sobrou (duas colheres) e junte-a à mistura da panela.

7.Adicione o creme de leite azedo, ajuste o sal, a pimenta, levante fervura e sirva quente.

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