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Valentina de Botas: Vô, por que a galinha mudou de calçada?

Rotulações ensejam patrulhas e limitam o que podemos dizer e ser, e até pensar

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h40 - Publicado em 26 nov 2017, 22h04

O preconceito racial, no Brasil, é real, evidentemente, mas é oblíquo, singularidade que o aprofundou e dificultou combatê-lo. Mudar de calçada porque nela está um negro é ato ostensivo contrário a essa sutileza. A boçalidade da declaração de Taís Araújo segundo a qual “no Brasil, a cor do meu filho faz com que as pessoas mudem de calçada” degrada o combate à discriminação real porque falsifica sua representação, desrespeita o próprio filho usando-o para sustentar uma mentira e desenha uma paisagem fictícia da qual desaparece a vulnerabilidade de meninos pobres no espectro de mais de 50 tons do preconceito de classe que ignora cores.

A declaração também cretiniza o debate já lobotomizado pela falácia de que a escravidão foi um evento patrocinado por brancos mauzinhos contra negros bonzinhos, quando na verdade se constituiu uma prática histórica (anterior ao capitalismo, viu, anticapitalistas sem leitura?) ligada a questões de poder. Tanto assim que, nos Estados modernos onde foi adotada, homens negros com poder não hesitaram em ter escravos negros (no Brasil, do intocável Zumbi dos Palmares, que dispunha até de capitães-do-mato; ao barão negro do café Francisco Paulo de Almeida, que teve mais de 200 escravos). Claro que eram exceções, mas exceções também integram o mundo dos fatos e expressam um conceito. Taís finge não conhecer um Brasil em que a cor da pele não a impediu – provavelmente ajudou de certo modo – de ser uma mulher bem-sucedida. Sei que é exceção, mas isso não elimina do mundo dos fatos o de que há negros, hoje, com tal destaque na sociedade brasileira. Isso me levou a perguntar a algumas personalidades por que a galinha mudou de calçada.

Lula: para mostrar a eles que, depois do evento Lula, uma galinha operária e nordestina já pode mudar de calçada neste país.

Dilma: atrás de uma galinha sempre há uma criança.

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FHC: uma galinha honrada, fez isso pelo Brasil.

Temer: a galinha, como todos sabemos, fá-lo-ia, como de fato o fez, apenas com o apoio do Congresso.

Gilmar Mendes: você veja que é o que determina a Constituição.

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Roberto Barroso: a Constituição não proíbe a galinha ficar onde estava. Não podemos mais continuar dando importância ao que a CF diz e ignorar o que ela não diz.

Dr. Rey (na praia, de sunga e estetoscópio): ela ficou muito mais sensual na outra calçada. Quero aproveitar para dizer que não sou de esquerda, nem de direita, nem de centro: sou da mamãe.

Fátima Bernardes: gente, se eu e você, como sociedade, tivéssemos dado à galinha uma chance, ela não teria mudado de calçada.

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Cármen Lúcia: quando eu era criança pequena lá em Montes Claros, aprendi com os poetas árcades que boi sonso é que rompe a cerca e o clamor por justiça não será ignorado.

Janot, Dellagnol, Carlos Fernando e outros fanáticos: para melar a Lava Jato.

A maioria dos jornalistas: as galinhas não aguentam mais isso-tudo-que-está-aí.

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João Doria: foco, gestão; a galinha acordou com as galinhas e convocou a iniciativa privada, políticos, jornalistas, players que contribuam na gestão da nossa cidade.

Feministas (mostrando os seios): a pergunta é típica da sociedade judaico-cristã-machista-ocidental, se fosse um galo ninguém perguntaria por que ele teria mudado de calçada.

Movimentos afrodescendentes: a galinha não é preta, mudar de calçada foi claramente um ato de apropriação cultural.

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Artistas-e-intelectuais: estão preparando um abaixo-assinado na internet, um ato de repúdio no meio da tarde de um dia útil na Paulista e/ou no Leblon e um manifesto a ser publicado na Folha de S. Paulo.

Militantes contra-ou-pró-isso-e-aquilo: vão responder com textão no Face e ofensas às opiniões contrárias.

Meu lindo avô preto, lá do céu de Pernambuco: vivi 101 anos aí embaixo; não tive muita ilustração, mas sempre fui astuto e nunca percebi alguém mudar de calçada por causa da minha cor. Se aconteceu, foi algum cabra lesado que arrodeou à toa o caminho dele e eu, cuidando da minha vida, continuei no caminho que Deus nosso pai traçou. Vi coisa pior naqueles tempos sem essa lei dizendo que é crime o sem propósito de humilhar um preto e pobre. Sim, porque a um preto rico ninguém diz desaforo, pode até pensar, mas o pensar é de cada um. Com tua vó era pior: perguntavam por que ela, tão alva, o cabelo bom por riba dos olhos verdes, se assujeitava a um preto. Não se fala assim com uma mulher, pois vai aí que, não fosse eu um preto, estava certo ela se assujeitar. Perguntava só quem nos conhecia de pouco e ela respondia, com aquele falar da terra dela: ora pois, se é preciso t’explicar, inútil já é t’explicar. Vivi só pra ela e nenhuma adversidade diminuía a alegria da casa cheia com os nossos filhos, todos diferentes, todos parecidos comigo e com ela, todos brasileirinhos. Mas isso foi no meu tempo. Hoje, parece que no Brasil não há mais brasileiros, virou um cozidão malfeito com coxinhas, mortadelas, GLBT+abecedário, pró-ou-anti-isso-e-aquilo, direitista, esquerdista, ambidestrista, etc. Diferença é bom, mas uma pessoa é muita coisa para caber numa só qualidade da parecência ou da essência. Bitocas, minha neta preferida.

Com este momento família psicografado, encerro dizendo que rotulações ensejam patrulhas e limitam o que podemos dizer e ser, e até pensar. Talvez a cornucópia de caixinhas para enquadrar os brasileiros haja se estabelecido pelas estratégicas clivagens artificiais promovidas pelo lulopetismo para que o Estado, dominado por ele, se tornasse o ente fortalecido pelo enfraquecimento dos indivíduos diluídos em fantasmáticas categorias sociais baseadas numa antropologia da hostilidade que excede as tensões naturais do convívio em sociedade. O autoritarismo, a demagogia e a patrulha dos chamados movimentos de afirmação deformam a percepção dos problemas, atrapalham o caminho para soluções e fomentam ódios inéditos entre nós. Ademais, parte não pequena desses movimentos funciona como guildas de ideólogos profissionais que têm a si mesmas como fim cujos meios são os currais eleitorais urbanos que engendram para garantir uma clientela-eleitora-causa embalada pelo discurso oportunista de ignorantes e espertalhões.

Bom seria resistir a isso, o Brasil conciliar-se consigo mesmo. Sem ignorar diferenças, mas também sem armá-las e sem viver em função delas.

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