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Ouvindo os mortos

TRECHO DO TEXTO PUBLICADO NA EDIÇÃO 52 DA REVISTA PIAUÍ Clara Becker Passava das quatro da madrugada de sábado, 9 de outubro, quando o celular da médica-legista Gabriela Pinto tocou na sala de convívio do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, no Centro do Rio. Era o técnico de necropsia, Alexandre Braga Pereira, de 37 anos, […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 12h54 - Publicado em 7 fev 2011, 21h02

TRECHO DO TEXTO PUBLICADO NA EDIÇÃO 52 DA REVISTA PIAUÍ

Clara Becker

Passava das quatro da madrugada de sábado, 9 de outubro, quando o celular da médica-legista Gabriela Pinto tocou na sala de convívio do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, no Centro do Rio. Era o técnico de necropsia, Alexandre Braga Pereira, de 37 anos, que interrompia o sono das plantonistas para avisar que, naquele momento, mais quatro cadáveres haviam chegado ao necrotério. No beliche ao lado de Gabriela, a segunda legista do plantão, Antonieta Campos Xavier, perguntou animada: “Tem algum baleado?”

Quem trabalha com a doutora Antonieta conhece a regra: os baleados são todos dela. Diz-se nos corredores do IML que é uma injustiça ela não constar no Guinness como recordista mundial em necropsias de baleados. Essa circunstância faz com que Antonieta trabalhe mais do que seus companheiros. Grande parte das ocorrências registradas ali é, no jargão dos legistas, de Perfuração por Armas de Fogo, ou PAFs. Dos 1 080 casos de homicídio que chegaram ao IML no primeiro semestre de 2010, 913 foram por armas de fogo, uma média de cinco baleados por dia.

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Antonieta, 66 anos, é uma mulher pequena, de cabelos rebeldes e franqueza desconcertante. Para manter a forma, corre, faz musculação e bicicleta. No trabalho, costuma ser mais rápida que seus companheiros. Assim que se desembaraça de seus baleados, se apressa em ajudar os colegas. Já chegou a fazer 28 necropsias num só dia.

O IML é o desaguadouro das misérias de uma cidade violenta. Ali só chegam vítimas de mortes não naturais – assassinados, acidentados, suicidas. Em média, são autopsiados vinte corpos por dia. Às sextas-feiras, a estatística piora. “Sexta-feira é o Dia Internacional da Matança. Hoje está sendo atípico, pudemos até descansar um pouco”, disse Antonieta, referindo-se ao baixo movimento. Desde que o plantão começara, às oito da noite, até aquela hora, haviam chegado apenas oito corpos.

A estatística podia ou não merecer alguma comemoração. Às vezes, os corpos demoram a ser encontrados e os despojos das sextas sangrentas, principalmente as de sol, que estimulam o consumo de álcool, só aparecem no sábado e no domingo. Nos dias de chuva mata-se menos.

Antonieta saltou da cama e, tateando no escuro, apanhou seu uniforme dobrado sobre a cadeira. Enquanto se vestia – ela se recusa a dormir com a roupa de trabalho, ao contrário dos colegas –, definiu-se com crueza implacável: “Sou movida a defunto e Coca-Cola.” Como para justificar a brutalidade da frase, emendou: “O médico-legista não é um mortal comum. Nós somos abutres da humanidade. Não dá para ver o que a gente vê e permanecer normal.” Se já estivesse de pé, e não encolhida nos lençóis tentando espichar o sono um pouquinho mais, a colega Gabriela assentiria. Mais tarde, contaria que, na faculdade de medicina, vivia cheirando a formol. “Todo tempo livre que eu tinha, usava pra ir ao laboratório dissecar cadáveres.” Apaixonou-se pelas aulas de anatomia e descobriu sua vocação para legista. Em casa, inventava para os pais que ia acompanhar partos com um professor obstetra quando, na verdade, seguia para o IML na companhia de um professor de medicina legal.

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Certa vez, no laboratório da faculdade, Gabriela recebeu o corpo de um homem cujo olho saltado só estava preso à órbita por um feixe de nervos e músculos. Na época, ela namorava um rapaz que pensava em ser oftalmologista. Querendo agradá-lo, deu-lhe de presente um vidrinho de formol com o olho dentro. O namorado achou o gesto de mau gosto e Gabriela ficou com o olho para si. Juntou-o a sua coleção de ossos. Ao casar, teve de se desfazer de tudo. O marido não gostou da ideia de conviver com esqueletos e olhos.

Gabriela tem 36 anos e trabalha há oito no IML. Ela é baixa, magra, com músculos bem torneados. Os cabelos lisos chegam quase à cintura. Naquela madrugada, usava um uniforme verde da Rede D’Or, onde também trabalha, brincos de pérola e duas correntes de ouro: uma com a estrela de Davi, e outra com um pingente onde se lê o nome do filho de 5 anos, Miguel. É ortopedista, como o pai, com quem divide um consultório particular. Não abriu mão, no entanto, de exercer a medicina legal. A decisão não agradou à família, principalmente ao pai, que considera o ambiente de trabalho degradante e não entende o que a filha vê “na porra do IML”. Gabriela tem uma explicação: ali encontrou um modo de dar vazão a seu sentimento moral. A medicina legal lhe dá a possibilidade de condenar culpados e absolver inocentes. Gabriela busca compreender o que os mortos dizem com seus corpos mutilados.

Clique aqui para ler o texto na íntegra.

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