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Por Coluna
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Noite perfeita

O dia amanheceu e eu nem notei se fazia calor ou frio, apenas segui pela rua como se houvesse um vento solar e estrelas do mar

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 20h09 - Publicado em 17 nov 2018, 11h22

Heraldo Palmeira

Acostumei a uma agenda incerta. Foi um ano em que fiquei menos tempo em Sampa. Trabalhei e descansei noutros lugares. Quase um ano depois voltei a Perdizes, o mesmo lugar, a mesma casa, a mesma janela.

À entrada, encontrei o mesmo gato que, um ano antes, não passava de um rapazola descobrindo os segredos do mundo felino, assustado com as novidades. Agora, adulto, homem feito, cheio de segurança, fingido.

Estava na calçada, para me receber ao portão. Capitulou quando entramos na sala de estar e o chamei pelo nome, com ternura: deitou e depois estatelou de lado sobre o tapete, para que eu passasse o tênis – fui calçado neles de propósito – no seu dorso, da cabeça ao início da cauda.

A cada movimento, ele mexia as patas com prazer, enfiando as garras no tapete. E ficamos assim alguns instantes, comprovando que os gatos têm, como dizem, memória afetiva. Tanto que, nos dias seguintes, ele veio à porta do meu quarto se anunciando em miados elegantes. E desfrutamos, como da primeira vez, nossa companhia de amigos, eu escrevendo e ouvindo música, ele presente, cochilando bem acomodado.

Agora é o senhor do pedaço, já não se vale da minha cumplicidade para entradas e saídas de emergência usando a janela e o telhado logo abaixo.

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A casa está bonita, a presença feminina que agora existe nela dá sinais em todos os cantos. Há um clima de harmonia e felicidade no ar, que contagia silenciosamente os hóspedes.

Já na primeira noite, cheguei discretamente à velha padoca. Ainda na calçada, vi pela vidraça da vitrine que os mesmos funcionários estavam lá. Aproveitei o movimento e entrei sem chamar atenção, sem falar com ninguém, e sentei no lugar que fiz costumeiro, colado ao balcão.

De repente, o primeiro me percebeu e, refeito da surpresa, quis saber como tinha sido aquele meu ano distante. Desde minha estada em Portugal até o resto. E a farra tomou conta do salão, resgatando nossos chistes e nosso carinho. Eles não esqueceram nem mesmo de como gosto da comida! Claro que lacrimejei. Como não? A selva de pedra tem seus bichos afáveis ronronando afetos.

Entramos em campo para falar de futebol, dos campeonatos quase chegando ao fim, dos times que estavam prestes a erguer suas taças. Claro, tirando sarro dos que estiveram perto, dos que estão longe há tempos, usando tudo que servisse para tirar onda.

Pouco depois, a dona da padaria entrou e veio me contar que desistiu da moto sonhada. Vai seguir na garupa da Harley do filho, ele venceu no cuidado protetor, no medo pela segurança dela.

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O velho baiano, o mais antigo dos funcionários, que não sabe exatamente quando nasceu, que não tem documentos, veio me cumprimentar com sua voz doce e aquele jeito fidalgo de quem sabe tudo e não arrota sabedoria. Já passou dos oitenta mas, por não saber a idade, segue fazendo o pão nosso de cada dia da casa e vai enganar o tempo ainda por muito tempo com aquele jeitinho de quem não quer nada.

Como só acontece em Sampa, o dia teve os tempos das quatro estações. À noite, fui ficando tarde sentado diante da minha janela, luz do quarto apagada, a chuva fina que sucedeu a garoa dançando sob a luz do poste.

Eu vim correndo à frente do sol
Abri a porta e antes de entrar
Revi a vida inteira
Pensei em tudo que é possível falar
Sinais de bem, desejos vitais
Pequenos fragmentos de luz
Falar da cor dos temporais
Do céu azul, das flores de abril
Pensar além do bem e do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu
Pensei no tempo e era tempo demais
Eu simplesmente não consigo parar
Lá fora o dia já clareou
Você vai ter que encontrar
Aonde nasce a fonte do ser
O mundo lá sempre a rodar
E em cima dele tudo vale
Estrada de fazer o sonho acontecer

Dormi uma noite de sono e sonhos, perfeita, o friozinho de inverno fora de época dominando o ambiente. O dia amanheceu e eu nem notei se fazia calor ou frio, apenas segui pela rua como se houvesse um vento solar e estrelas do mar. Quem sabe o que isso quer dizer?

Trechos de:
Quem sabe isso quer dizer amor (Márcio Borges)

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