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Fernando Gabeira: As marcas do ano

Prefiro dar umas férias à política e escrever essa crônica como antigamente: falando de pessoas e coisas simples

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h38 - Publicado em 18 dez 2017, 21h14

Publicado no Globo

Os japoneses escolheram um ideograma para definir o ano de 2017: um símbolo gráfico que significa Norte, uma alusão aos coreanos que frequentemente lançam seus foguetes no mar do Japão. Com um inimigo externo desvairado como Kim Jong-un é mais fácil achar um símbolo. Trabalhando com o alfabeto, uma revista norte-americana optou pela palavra feminismo, referência ao furacão de denúncias de assédio sexual que sacudiu Hollywood e se desloca a cem quilômetros por hora rumo à Casa Branca.

Tentei encontrar algo que simbolizasse o ano no Brasil. Pensei na tornozeleira eletrônica, pois este ano estivemos de novo sob o impacto da Operação Lava-Jato. Mas ponderei: as tornozeleiras representam os empresários que já estão saindo da cadeia. Os políticos com foro privilegiado ainda nem chegaram. Pensei num pé com a tornozeleira, outro com uma asinha. Seria difícil, embora o símbolo Yin Yang da filosofia chinesa talvez desse conta dessas energias opostas.

Deixando o território da política e olhando apenas o Brasil, soubemos que, em 15 anos, matou-se mais no Brasil do que na Síria em guerra, mais que em toda a América do Sul, mais do que em toda a Europa.

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Há dez minutos que escrevo. Alguém deve ter sido assassinado do primeiro parágrafo até aqui. É a média nesse princípio de século. Nesse momento acho que a imagem da morte é uma forte competidora. Vivemos uma guerra visceral, matadores e mortos compartilham o mesmo país, às vezes o mesmo bairro ou a mesma cama.

Mas também deixaria de fora o turbilhão de vida que fervilha no Brasil, gente como a professora de Janaúba, em Minas Gerais, Helley Abreu Batista, que morreu para salvar crianças.

Desisto de achar um ideograma ou mesmo uma palavra para tudo o que se passou. Prefiro dar umas férias à política e escrever essa crônica como antigamente: falando de pessoas e coisas simples. Esta semana, por exemplo, conheci um Papai Noel em Gramado. Tadeu Salvador é o seu nome. Ele é profissional na Aldeia de Papai Noel, um complexo turístico sobre o Natal, aberto durante todo o ano. Salvador vendia automóveis usados e sofreu três AVCs. Mudou de profissão e está muito bem. Naquela atmosfera onde as árvores vieram da Europa e há praças simulando nevadas, Salvador faz uma discreta concessão à sua condição terrena: um ventilador branco, marca Mondial.

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Já que cheguei ao ventilador, gostaria de tratar de alguns objetos com que tentei me entender este ano. Chave, óculos e caneta estão perdidos para o diálogo. Formam uma organização criminosa que não só desaparece em conjunto, como usa armadilhas para me confundir. Se procuro os óculos aparece apenas a chave, ou a caneta, embora esta tenda a sumir para sempre.

Em 2018, buscarei diálogo mais próximo com dois recém chegados à minha vida: o crachá no trabalho e o cartão eletrônico que abre a porta do quarto do hotel. O crachá falhou algumas vezes, talvez porque não tenha visto a data da renovação. Sempre me deixava em dúvida: vai ou não vai. Depois que ele caiu no mar, na Ilha de Algodoal, nunca mais falhou. O barqueiro estava com medo de uma tempestade e voltou rápido ao continente. Jogou a mochila na areia, e uma onda a inundou. Pelo menos aprendi que, se o crachá falar, é hora de levá-lo para umas férias na praia.

Os cartões eletrônicos dos hotéis são o desafio. Chego do trabalho tão cansado que nem sei se deixo as bolsas do equipamento ou sento na cama, ou faço os dois ao mesmo tempo. E a porta não abre.

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Não sei se em Porto Velho ou Boa Vista, lembro-me do cartão que falhava todo dia, duas vezes em algumas ocasiões.

Em Gramado o cartão falhou. Fui à portaria e disse ao recepcionista: o cartão falhou.

— Qual o número do seu quarto?

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— 1478.

— Desculpe, mas não existe esse quarto.

Tentei uma nova combinação:

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— 4178.

— Ah, aí sim — disse ele.

Pedi desculpas pelo erro. Estava acostumado com pousadas, onde o quarto tem dois dígitos, ou hotéis de três dígitos, mas quatro dígitos, para mim, são mais que o número de um brevíssimo quarto de hotel: é uma senha.

Por falar em senhas, talvez escreva um dia sobre como invadiram nossas vidas. Suspeito que tenham relações com a Orcrim formada pelos óculos, chave e caneta. Mas não tenho provas.

Espero encontrar alguém como Papai Noel no ano que vem. Preciso, de vez em quando, de uma pausa para as pessoas e as pequenas coisas da vida.

Em 2017, o Brasil conseguiu ser, simultaneamente, tão intenso e tão vazio que chegamos a saudar sua passagem. A esperança é de que o ano que entra seja melhor, ou, pelo menos, ruim de uma forma diferente.

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