O caso Marielle e um manifesto sobre os comentadores da internet
E por que todos deveríamos nos posicionar nas redes sociais, enfrentando a preguiça de lidar com idiotas em favor da multiplicidade de ideias
Por experiência empírica, nota-se que a internet tem sido cada vez mais tomada por radicais. O assunto é quente nas rodas de bares e, também, nos grupos de WhatsApp. Trata-se de um povo que quer sangue. Sangue do outro, de quem é diferente de si próprio. E isso independentemente do espectro em que cada um desses indivíduos, que chamarei aqui de “os comentadores” (comentaristas seria, de certa forma, elogiá-los; por isso prefiro a alternativa), se situa na polarização inflada por Facebook e seus primos.
Os comentadores dos radicais “de esquerda” e “de direita” – entre aspas por esses nem costumarem saber o que é, de fato, “esquerda” e “direita”; ou ainda o que significariam duas palavras que agora estão em voga entre os comentadores que nunca leram um livro (nem artigos do Wikipedia…) desses temas, o “fascismo” e o “neoliberalismo” – ambicionam a extinção total de seus opositores. Por estarem restritos a bolhas digitais e físicas, custa a eles perceber que no lado oposto há, também, humanos, com seus pensamentos, suas vivências, e capacidade para a fala, para a conversa.
Falta aos radicais algum resquício de empatia – e de mínima noção histórica e sociológica para saber que é da conversa e da divergência que saem os maiores avanços da civilização. Esses típicos comentadores se portam como miniditadores virtuais, sentindo-se tão seguros atrás do anonimato e/ou da cortina da internet quanto miniditadores se sentem atrás dos cegos generais que se ajoelham às suas ordens. Contudo, não percebem que assim, em atitude autoritária demasiadamente humana, parecem, em ironia, mais componentes animais de uma manada enfezada, do que propriamente humanos, indivíduos complexos moldados pela evolução cultural.
São esses, os “comentadores”, que disseminam mentiras danosas no ambiente online (no jargão, as fake news). Os que em qualquer reportagem acerca de direitos humanos lançam mensagens ridículas, as de sempre, dizendo que seria “mimimi”, que aqueles outros protegeriam “direitos dos ‘mano’”, e por aí vai. Os mesmos que espalham por aí que Marielle Franco teria se envolvido com bandidos, que teria sido eleita pelos mesmos (tudo fake news), apenas como forma de não só diminuí-la, como de diminuir tudo que ela, feminista, negra, divulgadora dos direitos de todos nós (humanos, afinal), representava, para assim tentar reprimir os grupos dos espectros opostos do Facebook.
Encaixam-se nesses “comentadores” os haters, os trolls. Estão lá os que, numa notícia que destaca “Não, a vereadora do PSOL assassinada não era casada com o traficante – nem foi eleita pelo Comando Vermelho”, dizem algo como “viu só, ela era casada com um traficante”, simplesmente por terem desprezado o “não” da chamada e se atido ao que confirmava suas visões preconceituosas e restritas do mundo. Os comentadores demonstram nojo de tudo e de todos que não forem iguais a eles ou aos ambientes que os mesmos frequentam. Nisso, em muito se parecem com o pior representante do gênero autoritário de nossa raça, a humana. Isso porque não têm coragem de se olhar no espelho e, assim, reparar que o nojo na verdade está em si, e deve ser direcionado para si. Vivem dentro de uma sala formada pelos blocos do viés da confirmação. E não pensam fora dela.
Quando as redes sociais começaram a se popularizar, lá por 2010 – um ano tão-perto, no entanto tão-longe pelo sentimento de quanto mudou desde então –, a reação primária dos mais sensatos em relação a esses comentadores foi “vamos desprezá-los, é gente idiota que nada representa”. Quando essa turba idiota ganhou corpo e importância, fazendo com que frutos dos obtusos como as fake news, os discursos de ódio, os vazamentos de nudes, os comentários com “mimimi” no contexto, passassem a ser discutidas pelos não-obtusos, a recomendação passou a ser outra: “sabemos que os ‘comentadores’ existem, só que é melhor desprezá-los; sigamos a recomendação dos zoológicos, de não alimentar os animais”.
Todavia, nos últimos dois anos, em especial, a importância dos idiotas parece ter se provado maior do que o previsto. Eles foram capazes de eleger presidentes (como Trump) e no mínimo possuem um representante brasileiro com chance de tomar o estado para si (Bolsonaro, se é que precisava mesmo nomeá-lo). A Idiocracia – para facilitar na referência, vide filme de mesmo nome – que começou em antigos fóruns online, passou para o Twitter, ganhou milhões de seguidores no Facebook, começou a dominar o Instagram e agora pode se instituir no mundo real.
Ao desprezá-los, os não-idiotas deixaram que os idiotas, primeiro, julgassem que tinham poder e, agora, parece que podem vir a tê-lo. E, para tal, como todos os idiotas, como todos os radicais, como todos os miniditadores, não têm receio em usar as armas que forem – de bots aos fuzis – para chegar à Idiocracia que tanto visam alcançar.
Como os comentadores vivem sob os alicerces do autoengano e do viés da confirmação, acreditam cada vez mais que só eles existem no planeta. Afinal, no planeta chamado Facebook, e também, em imensa maioria, nos espaços de comentários de sites (quais forem eles), parece só existir eles, mesmo. O alívio é notar o óbvio: a Idiocracia vive da ilusão. É uma infelicidade que os habitantes da mesma não percebam tão constatação.
Há oposição a eles, há quem saiba balancear e dialogar. O problema é que esses têm recorrido a ambientes distintos dos idiotas para se manifestar. Percebo que os não-idiotas evitam, por preguiça, medo ou por darem valor ao próprio tempo, discutir com os comentadores em praça virtual pública.
Eles preferem falar só com os seus. Em grupos de WhatsApp. Em sociedades fechadas em redes sociais. Por meio da troca de vídeos de YouTube. Ou abrindo portas para o papo com quem escreveu uma determinada reportagem, ou quem compartilhou uma mensagem importante na web, mas aí por meio do perfil no Facebook, no Twitter, no Instagram, desse mesmo alguém que escreveu tal reportagem. Em consequência, os sensatos criam a própria bolha, mesmo que, sendo sensatos, saibam que existe a Idiocracia fora desse mundinho.
E daí? O perigo é que, sem enfrentamento direto, os comentadores passem a achar mesmo que dominaram o mundo. De tanto acreditarem nessa ilusão, a mesma pode se concretizar. E isso tem chance de ocorrer com facilidade, por esses não terem sido encarados em seus terrenos. Sem o enfrentamento, conseguem se organizar, se mobilizar e eleger os seus próprios para o poder.
O risco maior é, em breve, vermos nossas vidas dominadas pela Idiocracia nascida no Facebook. E os sensatos então já serão os julgados como errados, numa sociedade facebookiana na qual o errado será o diferente do padrão “família doriana com pai repressor, machista e dono de tantos preconceitos, e mãe reprimida, machista e dona de tantas preconceitos.” O errado será o que fugir do comum, do chato e da rendição às regras estabelecidas. Como em qualquer “cracia”, os errados serão também os perseguidos. Por terem se escondido quando havia a chance da batalha virtual, podem acabar na necessidade de se esconder não mais por opção, mas por se tornarem a presa dos idiotas num conflito real.
Para fugir desse futuro tenebroso, potencialmente orquestrado por aqueles que chamam de “mimimi” qualquer coisa contrária às suas vontades e condenam à morte quem não concorda com eles, é preciso enfrentar os comentadores. Não em debates longe dos mesmos. Mostra-se cada vez mais urgente que se tome uma posição no terreno dos comentadores.
A guerra de palavras pode ser levada a eles. Manifesto-me, então, a favor de gente sensata começar a, também, se pronunciar na esfera do virtual. E, se você for o sensato, não se restrinja aos ambientes controlados, protegidos, e sem cacofonia. Tem-se evidenciado como essencial pisar nas abas de comentários de sites, nas caixas de diálogos dos posts no Facebook, nos territórios dominados pelos comentadores, como forma de mostrar a eles que não são maioria, muito menos têm tanto poder assim. A humanidade é melhor que eles. Ou não?
É preciso um esforço para voltar a provar, inclusive para eles mesmos, como os comentadores não passam de idiotas. Se isso não for feito, será a voz desses que se sobressairá, primeiro na internet e, depois, no mundo palpável. E aí correremos o risco de ser tarde demais. Pois enfim seremos escravos numa realidade assim já prevista, em máxima de 1968, olhe só, tão difundida hoje pelas redes sociais (dê um google e verá): “Os idiotas irão tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade”.
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