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Por Filipe Vilicic
Crônicas do mundo tecnológico e ultraconectado de hoje. Por Filipe Vilicic, autor de 'O Clube dos Youtubers' e de 'O Clique de 1 Bilhão de Dólares'.
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Como o ‘povo do Facebook’ é também culpado pela morte de Marielle

Num mundo similar ao do Big Brother (não falo do reality show), somos avatares-reféns das ilusões virtuais; e assim abandonamos o real (e seus problemas)

Por Filipe Vilicic Atualizado em 15 mar 2018, 16h25 - Publicado em 15 mar 2018, 15h54

Foi difícil dormir. Ontem não pode ser tido como um dia normal. Tive sonhos perturbadores, em que vivia numa nação onde todos só sobreviviam no virtual, na ilusão de avatares mentirosos espalhados pela internet. Era uma ditadura do Grande Irmão. Acordei, tomei café, chequei e-mails, acessei o Facebook. Lá notei que nada mudou. Muitos facebookianos esperneando como sempre; no entanto, também da maneira de sempre, como papagaios digitais. Encarando tudo como se fosse virtual. Posicionando-se no mundo da ilusão. Nada mudou. E muitos ainda parecem insistir que isso é o normal. Se for, o normal é vergonhoso. O normal seria o que vi ao abrir o WhatsApp e notar que num grupo de homens trocavam nudes vazados de mulheres (não os vi, pois há muito desabilitei o download automático de imagens no aplicativo)? Isso não é normal. Ao menos, para mim. Ainda mais um dia depois do assassinato de Marielle.

Ensaiava, antes, escrever sobre um estudo do MIT que mais uma vez (digo mais uma vez por essa outra notícia) certificou como mentiras viajam mais rápido (seis vezes), e tem maior chance de viralizar. Todavia, ao percorrer a timeline hoje, veio um insight, daqueles que depois que surgem passam a parecer óbvios. O gosto pela fofoca; por se exibir como informado sem ler nem um livro, um jornal, uma revista; de vender aos outros uma ilusão facebookiana de si, enquanto se é outra pessoa na real (mais covarde, mais desinformada, mais desinteressante, mais…); as notícias falsas que circulam só porque há quem compartilhe… a era das redes sociais em tudo tem a ver com a situação precária, vexaminosa, que existe hoje no mundo físico, aquele em que uma boa parcela só pisa por obrigação.

A esses, seria muito mais agradável se fosse possível comer, beber, ganhar dinheiro, ir ao banheiro e transar (isso, tá quase possível) no Facebook. Se um dia for possível, aposto que jamais se desconectariam. É muito mais fácil ser um avatar. E fugir dos problemas da realidade.

O estudo do MIT é prova disso. Há uma necessidade pulsante do ser humano em se exibir como informado, por dentro, um sabe tudo. Repito: exibir-se. Não há, por outro lado, uma necessidade honesta de ser assim. Por isso, Twitter, Facebook e afins caíram como uma luva que se encaixa perfeitamente nos cérebros dos seres humanos. Neles, é possível fingir ser algo que não se é. Alguém melhor. Um personagem de si, permanente e feito de pixels.

Se há preguiça de se informar, por exemplo, o artifício é enganar os outros se fingindo de sabichão. Como? Ao compartilhar, “antes de todo mundo” (essa é a sensação), as manchetes que se vê. Quanto mais sensacionalista for, tanto melhor. Assim aumenta a chance de os amiguinhos verem o post, visto que tanto eles quanto o algoritmo do Facebook (que, vale lembrar, reflete nossos gostos, tão-somente; se é um vilão, nós é que compomos esse vilão) gostam de sensacionalismo. A malandragem não teria tanto sucesso ao compartilhar notícias de fato, muito menos chamativas – afinal, essas não dizem algo como “celebridade X tira a roupa em Y como forma de apoio à ideia radical Z. Clique aqui!”.

E esses avatares nem passam vergonha. Ou dificilmente passam. Por quê? Pois esses mesmos indivíduos vivem dentre outros que se comportam como eles. Todo mundo tá no mesmo jogo. E se surge um diferente no meio, alguém que, digamos, realmente quer se informar, ou realmente quer protestar, fazer algo mais real contra o que se passa por aí, como a absurda morte de Marielle, bem, esse alguém acaba sendo tido como o chato, como o inoportuno. Afinal, esse alguém é aquele que questiona os avatares alheios. Que não se engana com a ilusão construída em bytes.

O perigosíssimo efeito disso é se passar a viver num país, o do Facebook, no qual todo mundo só conhece MC Loma, mas finge saber de Geovani Martins (cujo livro de contos, O Sol na Cabeça, vale muito ser lido; ainda mais no dia de hoje). Onde falam tanto sobre Stephen Hawking na data de sua morte, sem nunca se ter lido um livro, ou (ainda mais raro) um artigo científico, de autoria do mesmo. Um no qual que se grita Fora (preencha com qualquer coisa da onda)! em posts enervados, para depois desligar o computador e passar a torcer pelo próximo Carnaval para se ter a oportunidade, enquanto se usa uma máscara politizada qualquer, de passar a mão em menininhas, jogar lixo na rua, esquecer do Fora (preencha com qualquer coisa da onda)!. Um no qual uns caras descolados postam diariamente textos feministas em suas redes sociais como forma de se sair bem na fita, enquanto não se aguentam de ansiedade para ver (ou compartilhar) o próximo nude vazado de alguma garota.

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Provavelmente você identificou muitos dos seus amigos e colegas aí na descrição acima. Ou talvez tenha se sentido refletido nesse espelho social facebookiano. Incomodou-se? Achou que é uma indireta? Aviso: é direta, mesmo. Trata-se de uma provocação.

No caso – tristíssimo, vergonhoso, vexaminoso, dramático, e mais tantos adjetivos que provavelmente ainda nem foram inventados para retratar o atual cenário – de Marielle Franco, é o mesmo. Isso é de chorar. E não lágrimas virtuais.

Nota-se muita gente chorando no Facebook, por meio de emoticons (escolhe-se o “triste”, o , na marcação de posts alheios). Mas a maioria das lágrimas só dura um dia, e são estritamente fabricadas de bytes. Um lamento tão ilusório quanto as fotos photoshopadas do Instagram.

Logo depois esse povo do Facebook só espera pelo próximo hit, o próximo vídeo de um youtuber, pela próxima notícia falsa (e “vale” até se for fake news sobre Marielle; já me deparei com alguns exemplos do tipo) a ser compartilhada. Esperneia-se no digital, mas a coisa falece lá. Na real, mesmo, o povo do Facebook volta à realidade na qual não veem problema em dar um por for para um policial para se livrar de uma multa, ou ainda para garantir a segurança num condomínio, ou ainda para livrar o filho de um flagrante — e é daí que nascem coisas como milícias, não se engane; fomos todos nós que as criamos, com nossos comportamentos de avatares passivos. Um povo do Facebook que, sim, também espera pela próxima notícia dramática. Só para poderem emendar em suas gritarias virtuais.

Nesse mundo onde o enfrentamento só ocorre no Facebook, incentivam-se brutalidades não-facebookianas. Incentivam-se assassinatos reais. E ninguém age de fato enquanto seu WhatsApp não for bloqueado por um juiz, enquanto o Instagram continuar operante, enquanto o app do Facebook permanecer disponível na tela do iPhone. Esse povo específico do Facebook (seria maioria?) se revolta muito mais, por muito mais tempo, quando um juiz decreta o bloqueio do WhatsApp pela empresa não ter colaborado em investigações que levariam a traficantes, pedófilos, milícias, do que, de fato, quando uma vereadora defensora dos direitos humanos, e eleita democraticamente, é assassinada.

Ou assim costuma ser. Espero, desta vez, de verdade, estar errado em tal percepção. Mas duvido.

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E se está “tudo uma merda”, como se gosta de se falar nas redes, é por vivermos num país de merda. E esse país é o do Facebook, que em muito reflete aquele outro, o Brasil. E quem constrói ambos? Todos nós. Somos nós, facebookianos, que matamos ou permitimos matar.

*** É inevitável comparar a situação a um Big Brother no estilo 1984. Uma distopia de um livro de ficção-científica que parece se tornar cada vez mais não-ficção. Uma no qual o uso de ferramentas como redes sociais, smartphones, Big Data, leva a uma autocracia onde se torna passável militares na rua, a morte de ativistas, a disseminação de mentiras danosas — e gente chorando no online, mas simultaneamente dizendo ou apoiando coisas como “mereceu isso por ter se envolvido com (…)” ou “isso que dá quem defende (…)” na realidade palpável. Isso porque o que o povo quer é só continuar a poder se entreter em redes sociais, smartphones, em sites pornôs. E, para fingir que não é assim, podem eleger um líder virtual da vez, um Emmanuel Goldstein (Não conhece o nome? Dê um google) para chamar de seu, tudo para se fingir de engajado. E, depois, se a maré virar, simplesmente passam a clamar pelo enforcamento de Goldstein. E tudo resolvido.

*** Encerro com uma indicação de livro, outra de um filme e ainda uma série de TV (para todos os gostos de público!) para captar ainda melhor a mensagem deste texto e a relação ente Facebook, Big Brother e Marielle:
Livro: 1984, de George Orwell (como não poderia deixar de ser)
Filme: Alphaville, de Jean-Luc Godard
Série de TV: Electric Dreams (em especial, o episódio Kill All Others; vale também o conto inspirador, de PKD, o The Hanging Stranger)
Apenas um de cada gênero, para facilitar a todos (em especial, os que não gostam de textões) nessa consulta.

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