Selva mitológica
Relatos dos exploradores da Amazônia ajudaram a consolidar a ideia da floresta brutal e ameaçadora, um conceito que começa a mudar
Em 24 de junho de 1542, a primeira expedição europeia a explorar por completo a grande via hidrográfica que conectava os Andes ao Oceano Atlântico experimentou a fúria de “dez” ou “doze” mulheres indígenas que defendiam seus territórios. “Aqui se viram índias com arcos e flechas, que faziam tanta guerra como os índios, ou mais.” O relato, escrito pelo frei Gaspar de Carvajal, acabou dando o nome ao rio, chamado desde então de Amazonas, numa associação das arqueiras das selvas com as míticas guerreiras descritas por Heródoto (485 a.C.-425 a.C.).
Se as índias guerreiras realmente existiram ou foram apenas fruto da imaginação do religioso espanhol, nenhum especialista conseguiu afirmar com certeza. O fato é que quase 500 anos depois de ser escrito, o relato de Carvajal acaba de ganhar uma nova e caprichada tradução para o português, setenta anos depois de sua última publicação no Brasil, em 1941. Sob o título enigmático de Relação do Famosíssimo e Muito Poderoso Rio Chamado Marañón (Editora Valer), a obra vertida do espanhol quinhentista pelo historiador Auxiliomar Silva Ugarte, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), ajuda a compreender o fascínio que a floresta provocava nos desbravadores e como se forjou a cultura exploratória empreendida nos séculos seguintes. “Expedições como as de Carvajal tinham importância vital de reconhecimento, embora os homens que as realizassem já quisessem que aquilo se tornasse uma conquista, um passo para a colonização”, explica Ugarte. “Digamos que 95% dos que deixaram esses testemunhos escritos levavam a região a um patamar positivo para futuras intervenções, ou seja, ocupar, colonizar. Nas entrelinhas dos discursos, eles colocavam proposições do tipo ‘aqui é possível criar gado, tirar boa madeira’”, afirma Ugarte, que também é autor de Sertão de Bárbaros: o Mundo Natural e as Sociedades Indígenas da Amazônia na Visão dos Cronistas Ibéricos — Séculos XVI-XVII (Editora Valer).
Assim como Carvajal, outros exploradores da região amazônica também a viam como ambiente a ser conquistado e explorado economicamente. Entre eles estão figuras celebradas da ciência, como o naturalista Alexander von Humboldt (1769-1859). Na biografia do explorador alemão A Invenção da Natureza (Crítica), a historiadora Andrea Wulf escreve que a ideia de “aperfeiçoar” a natureza era corrente no pensamento ocidental 300 anos depois da crônica pioneira de Carvajal. No século XX, Euclides da Cunha descreveu a floresta em À Margem da História (Editora Unesp) como “aquela natureza soberana e brutal, em pleno expandir das suas energias, é uma adversária do homem”. À luz dos novos tempos e das complexas questões climáticas que o planeta enfrenta, essa visão começa a mudar. À luz do conhecimento científico, a Amazônia se tornou um recurso vital a ser preservado e explorado de forma consciente e não predatória. Com isso, o caráter mitológico, desafiador e enigmático de relatos como os de Carvajal passa, cada vez mais, a se restringir à esfera da história e da literatura — felizmente.