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#21 A VERDADE: O valor da mentira

Só cresce a onda das fake news, fenômeno que influencia eleições e pode até tirar a vida de alguém, como já ocorreu no Brasil

Por Anna Carolina Rodrigues
Atualizado em 30 jul 2020, 20h09 - Publicado em 21 set 2018, 07h00
NOVILÍNGUA - Donald Trump deu novo significado às fake news — agora, elas nomeiam tudo o que lhe desagrada (Nadav Kander/The New York Times Magazine/.)

Durante o conclave de 1522, que terminaria por ungir Adriano VI em papa, as estátuas no entorno da Piazza Navona, no centro de Roma, passaram a amanhecer com pequenos pedaços de papel pregados. Eram textos de autoria do escritor e poeta Pietro Aretino (1492-1556), já então uma das mais conhecidas “penas de aluguel” da Itália. Com seu estilo satírico e mordaz, inteligente e ferino, Aretino dedicava-se a atacar um por um os cardeais que poderiam vir a ser o novo pontífice. Os ataques eram financiados pelo cardeal Giulio de Medici, que acabou se tornando o papa Clemente VII um ano depois, com a morte de Adriano VI. A partir daí, o gênero dos “panfletos difamatórios” ficou conhecido como “pasquim”. Aretino transformou a difamação em negócio e fez fortuna com os jornalecos.

Em 2016, as mentiras veiculadas com o objetivo de beneficiar um indivíduo ou um grupo — ou simplesmente franquear ao seu disseminador o prazer de manipular multidões — ganharam o nome de fake news. Aquele foi o ano em que o mundo se surpreendeu com a vitória do Brexit no Reino Unido e também o ano em que, nos Estados Unidos, as redes sociais foram infestadas por textos que diziam que a então candidata democrata, Hillary Clinton, havia enviado armas para o Estado Islâmico, ou que o papa Francisco declarara apoio ao rival dela, o hoje presidente Donald Trump.

Nas fake news não cabem relativismos nem discussões filosóficas sobre o conceito de “verdade” — trata-se, pura e simplesmente, de informações deliberadamente enganosas. São lorotas destinadas a ludibriar os incautos, ou os nem tão incautos assim, ávidos por pendurar seus argumentos em fatos que não podem ser comprovados. O suposto desconhecimento de uns, aliado ao oportunismo de outros, ampliou o significado da expressão de forma a adequá-lo a demandas de ocasião. Em prática inaugurada por Trump, a expressão fake news passou a ser usada por poderosos para classificar tudo o que a imprensa profissional publica a respeito deles e que lhes desagrada — apesar de ser invariavelmente verdadeiro. Ajuda no sucesso dessa estratégia maliciosa a popularidade dos novos meios de comunicação nascidos com a internet.

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Companhias do Vale do Silício encampam iniciativas de checagem de fatos para mitigar os efeitos danosos das fraudes

A noção de jornalismo profissional é uma ideia moderna, que só foi desenvolvida no século XIX, na Europa e nos Estados Unidos. “Os primeiros veículos, chamados de ‘jornais de referência’, inauguraram a ideia da independência editorial e da busca pelo relato preciso, baseado em múltiplas fontes de informação e elementos de comprovação de veracidade, como documentos ou elementos fotográficos”, explica Ivan Paganotti, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). Tais fundamentos, no entanto, com o advento da internet, passaram a perder relevância para o leitor, que preza o efêmero, o rápido, o imediato. Velocidade é o nome do jogo, e às favas a veracidade.

Uma pesquisa feita neste ano pelo Instituto Ipsos Mori, de Londres, com 19 000 leitores de 27 países, majoritariamente digitais, investigou quanto os indivíduos acreditam no conteúdo que recebem em suas redes sociais, como Facebook, Twitter e WhatsApp. O resultado apontou os brasileiros como a população que mais acredita em fake news — 62% dos entrevistados admitiram já ter tomado calúnias por verdades e nem piscaram. Na Itália, esse porcentual foi de 29%. Outra pesquisa, essa do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), buscou comparar a velocidade de propagação das informações — as falsas e as procedentes, cotejando umas com as outras. Concluiu que, no Twitter, as falsificações se propagam 70% mais rapidamente que as notícias comprovadas (o alto teor emocional das mensagens falsas seria a principal explicação para o fenômeno). No Brasil, uma pesquisa do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da USP, identificou os grupos de WhatsApp como os principais vetores de notícias falsas — e poucas vezes esse fenômeno do rastilho de inverdades tem sido tão verdadeiro como nas eleições presidenciais brasileiras deste ano.

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VEJA fez sua primeira abordagem do poder dramaticamente destruidor das notícias falsas em reportagem publicada em fevereiro de 2016 — é a comprovação da juventude da novidade, erva daninha apenas recentemente introduzida no cotidiano. Em 3 de maio de 2014, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, foi amarrada, arrastada, espancada e morta por uma multidão de moradores da periferia do Guarujá, litoral de São Paulo, incitados por uma informação falsa. Divulgada em uma página de Facebook, a “notícia” dizia que uma mulher loira vinha sequestrando crianças nas redondezas para arrancar-lhes o coração em rituais de magia negra. Fabiane, que tinha acabado de tingir os cabelos, foi tomada pela personagem, cuja existência nunca foi comprovada. Linchada, morreu, deixando o marido e duas filhas, a mais nova de apenas 1 ano.

Conforme os efeitos perniciosos das notícias falsas foram sendo sentidos pelo mundo, as atenções se voltaram aos meios que ajudaram a propiciar seu surgimento. O Facebook tornou-se o principal deles depois do uso de suas ferramentas pela consultoria Cambridge Analytica, acusada de tentar manipular o pleito eleitoral americano. A barafunda em que a empresa de Mark Zuckerberg se envolveu levou seu fundador a ser chamado a depor no Congresso americano. Em resposta, a companhia e outras expoentes do Vale do Silício, como Google e Twitter, têm encampado iniciativas de checagem de fatos para tentar mitigar os efeitos danosos da informação fraudulenta. Mas, por enquanto, os Aretinos modernos, que disparam suas cascatas on-line, têm levado a melhor: não faltam estátuas para receber suas infâmias nem crédulos digitais para cair nelas.

Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601 

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