Depois de reinar durante décadas como o inquestionável epicentro da economia digital do planeta, o Vale do Silício, na Califórnia, dobrou-se sob o peso da fama: os salários são altíssimos, o custo de vida é caríssimo, a competição é ferocíssima e os gigantes que se desenvolveram na região estão buscando alternativas em outras direções. A realocação, em geral lastreada por mão de obra abundante e generosos incentivos fiscais, tem beneficiado metrópoles americanas como Austin, no Texas, e Miami, na Flórida. Mas é mais ao norte, na gélida Toronto, a maior cidade do Canadá, que as empresas de tecnologia mais miram nos dias de hoje.
Praticamente todas as grandes do setor já fincaram o pé na área metropolitana, de Apple e Amazon a Uber, TikTok, Netflix e Pinterest. A Microsoft inaugurou em fevereiro uma nova sede em uma torre de cinquenta andares. O Google recebeu a volta ao trabalho presencial em novas instalações no centro da cidade. O Twitter triplicou sua equipe local. Resultado: o ritmo de contratação é quatro vezes mais rápido do que no Vale do Silício — só no ano passado, a metrópole canadense criou 80 000 vagas no mercado digital, mais do que Nova York, Seattle e Boston juntas. Transformada em frenético polo de atração, Toronto tem hoje 5 200 startups e 15 000 empresas de alta tecnologia e assumiu o posto de terceiro maior hub tecnológico das Américas, atrás de São Francisco e Nova York, sendo o que mais cresce.
Conhecida por investir pesadamente em planejamento urbano, a província de Ontário, onde se localiza Toronto, sempre ofereceu estímulo à inovação, o que facilitou a atração das big techs. O ponto de partida do boom atual foi a criação, em 2017, do Vector Institute for Artificial Intelligence, bancado por 130 milhões de dólares do governo e da indústria com o propósito específico de manter talentos na cidade e estimular a abertura de centros de pesquisa. Em apenas cinco anos, a cidade se transformou. “É o efeito de políticas públicas sólidas, capazes de sustentar planos de longo prazo”, diz Tristan Jung, engenheiro do escritório canadense do Twitter. Na Grande Toronto funcionam onze universidades de ponta, formadoras de profissionais altamente qualificados, os quais, junto com estrangeiros contratados graças a uma política acolhedora de imigração, fazem com que 10% da mão de obra esteja ligada ao universo high-tech, o dobro de outras metrópoles. O salário médio de 90 000 dólares anuais é outro atrativo para as startups, impactadas pela média de 165 000 dólares por ano registrada no Vale do Silício. “O crescimento do setor tem sido exponencial. Em 2021, quase 3 bilhões de dólares foram investidos em startups, mais do que nos dez anos anteriores somados”, afirma Chris Albinson, diretor da Communitech, organização de suporte a empresas de tecnologia.
Toronto, da mesma forma que outras cidades canadenses, saiu ganhando com a política anti-imigração do ex-presidente americano Donald Trump, que logo no início de seu mandato suspendeu a concessão dos vistos essenciais para importar profissionais do exterior. O governo do Canadá, em contrapartida, simplificou seus processos de imigração para atrair talentos. A população canadense cresceu 5% entre 2016 e 2021, o dobro da taxa dos Estados Unidos, e em Toronto 52% dos moradores nasceram no exterior. “É fácil e rápido contratar talentos dos mais variados cantos do mundo”, afirma Liran Belenzon, ele mesmo um israelense que decidiu imigrar para fundar, em 2016, a BenchSci, empresa especializada em inteligência artificial biomédica.
Convidada a dar aulas na Universidade de Toronto, a cientista alemã Jessica Burgner-Kahrs comanda um laboratório de ponta onde desenvolve robôs parecidos com cobras, capazes de alcançar qualquer ponto do corpo humano e atuar em tumores considerados inoperáveis. “Eles podem revolucionar a cirurgia”, explica. A expansão não para: a mesma Universidade de Toronto, uma das principais do Canadá, acaba de anunciar que vai iniciar a construção de um polo de inteligência artificial orçado em 100 milhões de dólares e totalmente bancado por empresas locais. “Toronto empregou tempo e dinheiro para conquistar a reputação de centro promissor de negócios e agora colhe os frutos”, diz Martin Basiri, fundador de uma startup voltada para a educação universitária. Equilibrando com habilidade políticas públicas bem coordenadas, empresas interessadas e incentivos à entrada de estrangeiros, a cidade segue firme na trilha do desenvolvimento do século XXI.
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790