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Vida após a morte

Visitamos uma mãe que viu a filha de 40 anos morrer por câncer

Por Juliana Dantas e Tom Almeida*
Atualizado em 22 jan 2024, 17h31 - Publicado em 21 jan 2024, 09h00

A despeito da bela e envidraçada mesa quadrada da sala, é uma pequena bancada em meia lua na cozinha que traz aconchego para o café da manhã. As três cadeiras encaixadas no vão da mesinha não dão conta da família inteira, mas das três pessoas que ali moravam até 21 de janeiro de 2023: Alvenir, Samuel e Ana Michelle.

A filha, que já havia deixado a casa dos pais ainda aos 20 e poucos anos, voltou já mais perto dos 40. Os 12 anos convivendo com um câncer metastático começaram a pesar e o retorno para o ninho foi uma boa nova para todos.

O correr da vida

É com suco de cajá que somos recebidos numa manhã de calor. Embora a família more há muitos anos na Zona Oeste da capital paulista, as raízes maranhenses ainda são presentes. E é das origens que todos se alimentam por lá.

“No dia em que ela nasceu, eu cuidei de um pequeno serzinho”, relembra Alvenir. “Chegou aos 40 anos sendo um ser muito grande e, pouco mais de um mês depois, se tornou uma luz muito grande.” As lágrimas são vertidas com facilidade. Com frequência, a voz é embargada e impõe pausas à fala. Sorrisos e risadas fazem parte. Alvenir vivencia todos os sentimentos que o luto oferece. Conjugar a filha no passado é complexo.

“Todo tempo que eu vivi / Procurando o meu caminho / Só cheguei à conclusão / Que eu não vou achar sozinho” Roberto Carlos_Ana

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Em 1982 não havia chá-revelação, nem ao menos os pais sabiam quem chegaria. Se fosse menino, seria chamado de Felipe. Se fosse menina, Michelle. O “Ana” foi invenção do pai assim que chegou a um cartório de Brasília. “Inspiração da música do Roberto Carlos”, conta. “AnaMi” foi o batismo dado pela vida — e que ganhou o mundo.

AnaMi se formou em jornalismo e virou escritora. A escrita era latente e aflorou especialmente com a descoberta do câncer. “Eu era uma pessoa calada com uma mente em ebulição.”, relatou certa vez. “A escrita me organiza e me permite ser eu mesma o tempo todo.” E assim foi. A depender da cadeira em que se senta na cozinha-aconchego, é possível avistar as capas dos três livros publicados por ela, em molduras que ficam no corredor do apartamento.

Reconstrução

Voltar a sentar naquelas cadeiras foi um processo longo para Alvenir. O ritual matutino do desjejum era um dos mais íntimos momentos compartilhados com a filha. Agora, já são quase 365 cafés da manhã com uma cadeira vazia, que denota a presença da ausência. Mas também é ali em que ela se ata aos laços da memória.

O trabalho de reconstrução do vínculo com uma pessoa que partiu é árduo. Não se trata de nenhum misticismo, mas de aprender em quais lugares ou situações a reconexão acontece. “No começo, eu ia ao cemitério duas vezes por mês. Agora, vou uma”, diz Alvenir. Mas não é lá que ela encontra a filha. “Eu cuido do quarto dela todo santo dia.”

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O processo de luto é individual. O jeito que cada um lida com ele diz sobre a pessoa que partiu, a pessoa que ficou, o vínculo das duas e o modo de enxergar a vida. Se em alguns casos o quarto vazio pode ser proibitivo ou dolorido, na casa de Samuel e Alvenir não é. Também não se trata de negação: é um dos recursos de enfrentamento que foram encontrados pela família para lidar com o novo capítulo da vida.

O quarto de AnaMi é bonito, é confortável, é perfumado. A limpeza é feita diariamente, os incensos de que AnaMi gostava são repostos, as fotos de momentos singelos estão expostas, o jogo de cama é trocado a cada 15 dias. A porta está sempre aberta. Embora sagrado, não é um altar intocável: “A madrinha da AnaMi dorme lá quando vem visitar a gente. As crianças, meus netos, também costumam dormir lá. É um quarto vivo”.

Salva pelo coração

“O que segura hoje a sua filha é o coração.”, disse o médico paliativista para Alvenir. Com os outros órgãos parando aos poucos, nos últimos dias antes da partida, a pulsão de vida vinha de um único lugar. AnaMi viveu o mais plenamente que pôde, com auxílio dos cuidados paliativos, tabu que fazia questão de desmistificar. Reconhecia os próprios privilégios e queria estender os direitos de ser bem cuidada a todos. Fez questão de ser protagonista da própria história, virando a mesa com médicos que ainda insistem em olhar de cima para baixo. Deixou um legado de aprendizagem e combatividade por melhores condições de saúde no Brasil.

Sem nenhuma conversa vã de coach, AnaMi viveu e valorizou todos os momentos. Seu terceiro e último livro, publicado postumamente, foi concluído dois dias antes de partir. A morte encontrou AnaMi viva.

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“Nesse último ano, eu vi nascer o Instituto Ana Michelle Soares, eu vi o nome da minha filha batizando a casa da Favela Compassiva**, na Rocinha (RJ)”, orgulha-se Alvenir. “Eu sei o quanto as pessoas hoje têm admiração pela (Ana) Michelle. Por causa dessas duas palavrinhas: cuidados paliativos. Em pouco tempo, ela conseguiu o que muitos tentaram e não conseguiram.”

Às vésperas de o calendário mostrar um ano da morte de AnaMi, a mãe ainda busca encontrar novos jeitos de estar confortável na própria pele. “Faz bem saber que as pessoas não esqueceram a minha filha. Saber que ela continua viva nas memórias, nas palavras, em tudo.”

O que são cuidados paliativos?

Os cuidados paliativos ainda são frequentemente mal interpretados aqui no Brasil. Inclusive pelas equipes de saúde. O preconceito e a desinformação são parte do cenário que impede que cada vez mais brasileiros tenham acesso à abordagem.

Os cuidados paliativos são um direito e devem ser cartas colocadas na mesa para que decisões sejam tomadas por pacientes, familiares e profissionais de saúde. E os cuidados paliativos, ao contrário do que muitos pensam, não são só para estágios terminais de vida, embora também. Ainda que a cura seja — claro — desejável e possa, de fato, se concretizar. Cuidados paliativos também não são poesia nem olhares complacentes. Falar em cuidados paliativos é falar em direitos humanos e de boas práticas em saúde. A formação demanda conhecimento técnico profundo de manejos como o da dor, por exemplo, estudos de bioética e tomadas de decisão, bem como competências de comunicação.

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A Organização Mundial da Saúde (OMS) entende que os cuidados paliativos são uma abordagem multidisciplinar que deve ser aplicada a partir do momento do diagnóstico de uma doença grave. Os cuidados paliativos não são “para morrer”: focam na qualidade de vida a partir do cenário desenhado para cada paciente. A ideia não é prolongar nem antecipar a morte. Porém, não raramente, o cuidado multidisciplinar acaba por aumentar a expectativa de vida da pessoa adoecida. Nem todo paciente em cuidado paliativo está internado, pelo contrário: muitos, mesmo quando têm um diagnóstico de doença incurável, estão vivendo de maneira funcional há cinco, dez, quinze anos. Há vários casos aqui no Brasil.

Os cuidados paliativos não excluem o tratamento convencional/curativo. Muitas vezes, aliás, auxiliam na cura, pela abordagem multidisciplinar de cuidado. Pode, então, um paciente continuar o tratamento curativo e já estar em cuidados paliativos? Sim, inclusive é o recomendado. Porém, existe uma avaliação constante dos benefícios das intervenções com foco na cura. Pode existir um momento em que o tratamento, como quimioterapia, por exemplo, passe a prejudicar o paciente mais do que a própria doença.

Os cuidados paliativos se dedicam à dor total do paciente. Ou seja, pretendem minimizar ou mesmo zerar todos os efeitos colaterais daquele diagnóstico e daquele momento. Amenizar náuseas e dores, por exemplo, mas também dores psicológicas, espirituais, sociais.

Os cuidados paliativos focam na pessoa, não apenas na doença. É comum que, erroneamente, o paciente seja reduzido ao seu diagnóstico ou à sua idade, por exemplo. Nos cuidados paliativos, não existe “o câncer de fígado do quarto 12”; existem Maria, José, João, Adriana, Dirce… cada um com as suas particularidades, preferências, gostos, crenças, formações familiares, leituras de mundo. Os profissionais de saúde devem ser, no bom sentido, uma página em branco diante dessas pessoas e seus amigos e parentes. A ideia é respeitar a biografia do paciente, sempre tendo como norte a autonomia e o protagonismo dele e da família.

Nos cuidados paliativos, há uma horizontalização da equipe, menos foco no médico, que é mais distribuído entre todos os profissionais, como fisioterapeuta, psicólogo, terapeuta ocupacional, enfermeiro, fonoaudiólogo, nutricionista, assistente espiritual etc. E, principalmente, as vontades dos pacientes e familiares são soberanas. Cada uma dessas pecinhas da equipe cria um vínculo com aquele paciente e busca tratar todas as dores: a física, a emocional, a social e tudo o que mais doer. Uma dedicação a um indivíduo singular. A ideia é garantir qualidade de vida e dignidade durante a evolução da doença até o último suspiro. Não só para quem vai como também para quem fica. Em geral, o paciente em cuidados paliativos morre rodeado pelas pessoas que ama.

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Para conhecer Ana Michelle

Livros: Enquanto eu respirar, Vida inteira e Entre a lucidez e a esperança (Editora Sextante)

Instagram: Instituto Ana Michelle Soares

Documentário: Quantos dias. Quantas noites (Maria Farinha Filmes)

 

*Juliana Dantas é jornalista, diretora do Instituto Ana Michelle Soares — A revolução paliativa e diretora de comunicação do Movimento inFINITO.

*Tom Almeida é comunicador, presidente do Instituto Ana Michelle Soares e fundador do Movimento inFINITO.

**Favela Compassiva é um projeto pioneiro de Comunidades Compassivas no Brasil. Trata-se da abordagem de cuidados paliativos em comunidades com pessoas em situação de vulnerabilidade. É a união entre profissionais de saúde e moradores voluntários, capacitados a monitorar as condições de saúde dos vizinhos.

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