Humanos construídos e refeitos com as partes de seus semelhantes estrelaram contos e lendas nas mitologias de quase todas as civilizações, como a grega, a chinesa e a egípcia. Esses seres “fantásticos”, capazes de vencer a morte quando atacados por inimigos e doenças, viraram realidade pelas mãos da medicina moderna na década de 50, quando os primeiros transplantes de rim alcançaram êxito. Com o avanço tecnológico e a abrangência de outros órgãos, inaugurou-se uma era de procedimentos complexos que permitiram salvar vidas com a substituição de peças essenciais do corpo humano, inclusive o coração.
Ao longo dessa trajetória, o Brasil se projetou como expoente tanto de inovações técnicas — um dos primeiros transplantes cardíacos bem-sucedidos da história ocorreu no país — como de um programa pautado por um acesso mais justo aos órgãos. Afinal, a verdade inconveniente é que, para alguém renascer, outra pessoa terá morrido. Com uma lista administrada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que não distingue ricos e pobres, a estrutura nacional que coordena para quem serão doados órgãos e tecidos tornou-se referência global. E voltou a protagonizar um intenso debate nesta semana depois do transplante cardíaco do apresentador Fausto Silva, o Faustão. Ele tem um novo coração batendo no peito, e a rapidez com que se beneficiou do expediente passou a suscitar discussões e fake news sobre o funcionamento da espera pelo procedimento.
O transplante, realizado no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, foi realizado sem sustos e ocorreu sete dias após o anúncio do agravamento do quadro de insuficiência cardíaca do apresentador. Ainda que uma corrente de solidariedade tenha se formado nas redes sociais, multiplicaram-se posts encampando uma falsa narrativa de que ele teria “furado a fila”. Afinal, por que Faustão foi operado de forma tão rápida se há brasileiros esperando há mais de um ano por um órgão? A ignorância desconsidera um conjunto de variantes e critérios que conecta o paciente ao órgão doado dentro de um sistema organizado pelo SUS.
É fundamental entender que não existe uma “fila”, mas, sim, uma lista de espera pelos órgãos. Hoje ela abrange cerca de 40 000 cidadãos, com diferentes necessidades e indicações, de diversas regiões. Com a doação disponível, é iniciada uma corrida contra o tempo para localizar o receptor compatível sem que haja danos ao órgão. No rol, além da gravidade do estado do receptor, são respeitados fatores como tipo sanguíneo, peso, altura e correspondência genética. “Todos os pacientes são regidos pelos mesmos critérios técnicos e entram na lista de acordo com as informações das equipes de transplante. De acordo com a gravidade, podemos movê-los dentro das listas”, diz Daniela Salomão, coordenadora-geral do Sistema Nacional de Transplantes, do Ministério da Saúde. A decisão de aceitar ou rejeitar o órgão vem com a análise de todas essas questões. Faustão, ressalve-se, era o segundo da lista e foi transplantado depois da recusa de uma primeira equipe médica.
Isso não é raro: se não houver compatibilidade ou condições ideais, o procedimento não é realizado. E mais: nem sempre o órgão doado é considerado plenamente adequado. Um levantamento revela que, das 22 824 ofertas feitas pela Central Nacional de Transplantes (CNT) entre 2014 e 2021, 14 341 foram recusadas por problemas com a saúde dos doadores (63%). Trata-se, portanto, de uma sinfonia orquestrada, alheia a falsas impressões.
O cuidado é fundamental, sobretudo agora, em que os números de cirurgias estão se restabelecendo depois do impacto da pandemia. Espera-se aumento de 10% nas doações neste ano, mas os ruídos na engrenagem podem levar à diminuição da oferta, o principal gargalo. “O transplante começa na doação de órgãos”, afirma o cirurgião Paulo Manuel Pêgo Fernandes, presidente do conselho deliberativo da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Sem o início do processo, por óbvio, a história se rompe — e não por acaso, na busca de alternativas, cientistas têm estudado a produção de órgãos de animais geneticamente modificados para uso em humanos, assim como o desenvolvimento de peças em bioimpressão 3D.
São passos bonitos de uma extraordinária aventura da civilização. Essa área da medicina passou por avanços notáveis desde as primeiras experiências efetivas. O primeiro transplante cardíaco feito no Brasil, em 1968, apenas cinco meses depois da operação pioneira na África do Sul, foi conduzido pelo médico Euryclides Zerbini (1912-1993) no Hospital das Clínicas de São Paulo, tendo como paciente João Ferreira da Cunha, o João Boiadeiro, que sofria do mesmo problema de saúde de Faustão. Ou seja, o coração deles havia perdido a capacidade de bombear o sangue para o corpo.
Em 55 anos de existência, o programa público de transplantes brasileiro se tornou o maior do planeta. Desde 1997, foram realizados 138 984 procedimentos envolvendo corações, rins, fígados, intestinos, pulmões e afins. Faustão é beneficiário de uma fantasia humana transformada em realidade democrática. Na quinta-feira 31, quando esta edição de VEJA foi finalizada, ele passava bem — ria e falava: “Não é porque tenho dinheiro que estou bem”.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857