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Transplantes voltam a alimentar boatos infundados após doação para Faustão

Uma das conquistas mais fascinantes da medicina está no centro de um debate acalorado na sociedade

Por Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h09 - Publicado em 1 set 2023, 06h00
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  • Humanos construídos e refeitos com as partes de seus semelhantes estrelaram contos e lendas nas mitologias de quase todas as civilizações, como a grega, a chinesa e a egípcia. Esses seres “fantásticos”, capazes de vencer a morte quando atacados por inimigos e doenças, viraram realidade pelas mãos da medicina moderna na década de 50, quando os primeiros transplantes de rim alcançaram êxito. Com o avanço tecnológico e a abrangência de outros órgãos, inaugurou-se uma era de procedimentos complexos que permitiram salvar vidas com a substituição de peças essenciais do corpo humano, inclusive o coração.

    Ao longo dessa trajetória, o Brasil se projetou como expoente tanto de inovações técnicas — um dos primeiros transplantes cardíacos bem-sucedidos da história ocorreu no país — como de um programa pautado por um acesso mais justo aos órgãos. Afinal, a verdade inconveniente é que, para alguém renascer, outra pessoa terá morrido. Com uma lista administrada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que não distingue ricos e pobres, a estrutura nacional que coordena para quem serão doados órgãos e tecidos tornou-se referência global. E voltou a protagonizar um intenso debate nesta semana depois do transplante cardíaco do apresentador Fausto Silva, o Faustão. Ele tem um novo coração batendo no peito, e a rapidez com que se beneficiou do expediente passou a suscitar discussões e fake news sobre o funcionamento da espera pelo procedimento.

    CRITÉRIO - Fausto Silva: “Não é porque tenho dinheiro que estou bem”
    CRITÉRIO - Fausto Silva: “Não é porque tenho dinheiro que estou bem” (@faustosilvaofcial/Instagram)

    O transplante, realizado no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, foi realizado sem sustos e ocorreu sete dias após o anúncio do agravamento do quadro de insuficiência cardíaca do apresentador. Ainda que uma corrente de solidariedade tenha se formado nas redes sociais, multiplicaram-se posts encampando uma falsa narrativa de que ele teria “furado a fila”. Afinal, por que Faustão foi operado de forma tão rápida se há brasileiros esperando há mais de um ano por um órgão? A ignorância desconsidera um conjunto de variantes e critérios que conecta o paciente ao órgão doado dentro de um sistema organizado pelo SUS.

    artes transplantes

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    É fundamental entender que não existe uma “fila”, mas, sim, uma lista de espera pelos órgãos. Hoje ela abrange cerca de 40 000 cidadãos, com diferentes necessidades e indicações, de diversas regiões. Com a doação disponível, é iniciada uma corrida contra o tempo para localizar o receptor compatível sem que haja danos ao órgão. No rol, além da gravidade do estado do receptor, são respeitados fatores como tipo sanguíneo, peso, altura e correspondência genética. “Todos os pacientes são regidos pelos mesmos critérios técnicos e entram na lista de acordo com as informações das equipes de transplante. De acordo com a gravidade, podemos movê-los dentro das listas”, diz Daniela Salomão, coordenadora-geral do Sistema Nacional de Transplantes, do Ministério da Saúde. A decisão de aceitar ou rejeitar o órgão vem com a análise de todas essas questões. Faustão, ressalve-se, era o segundo da lista e foi transplantado depois da recusa de uma primeira equipe médica.

    Isso não é raro: se não houver compatibilidade ou condições ideais, o procedimento não é realizado. E mais: nem sempre o órgão doado é considerado plenamente adequado. Um levantamento revela que, das 22 824 ofertas feitas pela Central Nacional de Transplantes (CNT) entre 2014 e 2021, 14 341 foram recusadas por problemas com a saúde dos doadores (63%). Trata-se, portanto, de uma sinfonia orquestrada, alheia a falsas impressões.

    CONTRA O TEMPO - Transporte a jato: órgãos como o coração doado precisam ser transplantados em até quatro horas
    CONTRA O TEMPO - Transporte a jato: órgãos como o coração doado precisam ser transplantados em até quatro horas (Sargento Johnson/FAB/.)

    O cuidado é fundamental, sobretudo agora, em que os números de cirurgias estão se restabelecendo depois do impacto da pandemia. Espera-se aumento de 10% nas doações neste ano, mas os ruídos na engrenagem podem levar à diminuição da oferta, o principal gargalo. “O transplante começa na doação de órgãos”, afirma o cirurgião Paulo Manuel Pêgo Fernandes, presidente do conselho deliberativo da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Sem o início do processo, por óbvio, a história se rompe — e não por acaso, na busca de alternativas, cientistas têm estudado a produção de órgãos de animais geneticamente modificados para uso em humanos, assim como o desenvolvimento de peças em bioimpressão 3D.

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    São passos bonitos de uma extraordinária aventura da civilização. Essa área da medicina passou por avanços notáveis desde as primeiras experiências efetivas. O primeiro transplante cardíaco feito no Brasil, em 1968, apenas cinco meses depois da operação pioneira na África do Sul, foi conduzido pelo médico Euryclides Zerbini (1912-1993) no Hospital das Clínicas de São Paulo, tendo como paciente João Ferreira da Cunha, o João Boiadeiro, que sofria do mesmo problema de saúde de Faustão. Ou seja, o coração deles havia perdido a capacidade de bombear o sangue para o corpo.

    ORIGEM - João Boiadeiro (à dir.), o primeiro do Brasil, em 1968: cinco meses depois do feito sul-africano
    ORIGEM - João Boiadeiro (à dir.), o primeiro do Brasil, em 1968: cinco meses depois do feito sul-africano (Bettmann Archive/Getty Images; Arquivo/Agência O Globo/.)

    Em 55 anos de existência, o programa público de transplantes brasileiro se tornou o maior do planeta. Desde 1997, foram realizados 138 984 procedimentos envolvendo corações, rins, fígados, intestinos, pulmões e afins. Faustão é beneficiário de uma fantasia humana transformada em realidade democrática. Na quinta-feira 31, quando esta edição de VEJA foi finalizada, ele passava bem — ria e falava: “Não é porque tenho dinheiro que estou bem”.

    Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857

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