Diante da catástrofe que atinge o Rio Grande do Sul, afetado por fortes chuvas que causaram inundações e mortes, os hospitais do estado têm enfrentado o desafio de atender pessoas que correm risco de vida por diferentes doenças, a necessidade de atender resgatados e de recepcionar pacientes que precisaram de transferência em virtude dos alagamentos. Na luta pela vida, médicos e demais profissionais da saúde retomam estratégias adotadas durante a pandemia de covid-19, como restringir as visitas, mas se deparam com novos desafios, caso do racionamento de água por causa de problemas de abastecimento que afetam várias regiões.
O balanço da noite de quinta-feira, 9, enviado pela Secretaria de Estado de Saúde, dava conta de 268 unidades de saúde, entre hospitais, unidades básicas e pronto-atendimentos, com registro de algum tipo de dano causado pelas tempestades. Nove hospitais tiveram de paralisar suas atividades.
Localizado em Porto Alegre, o Hospital Mãe de Deus está entre as unidades fechadas. Embora a inundação tenha atingido o subsolo, uma área sem pacientes, foi feita a remoção de quase 300 pessoas no último final de semana para outras instituições da capital por questões de segurança. O hospital estava sem luz e água.
Na madrugada do sábado passado, 4, Hospital de Pronto Socorro de Canoas (HPSC) foi invadido pela enxurrada e as 400 pessoas que estavam na unidade, 100 funcionários, 101 pacientes e moradores que buscaram abrigo no local, tiveram de ser resgatadas por barcos e helicópteros. Dos 88 pacientes internados, 13 estavam na UTI. Dois pacientes, que estavam em estado crítico, não resistiram e acabaram morrendo.
O hospital, referência para 102 municípios da região, continua inundado e não é possível dimensionar os danos. “Nunca imaginei, em 30 anos de profissão médica e lidando com a emergência e situações de vulnerabilidade humana extrema, passar o que nossa equipe passou”, disse, em nota, o médico Álvaro Fernandes, diretor técnico do HPSC. “O que mais me chamou a atenção, dentro desse mar de emoções e desesperos, é o que o ser humano tem de mais essencial em sua característica: a intensa solidariedade para com os outros.”
‘Parece um pesadelo’, diz médica intensivista
Quem está dentro das unidades relata um cenário dramático e que cobra dos profissionais de saúde amplo conhecimento das condutas em situações de escassez na tomada de decisões. Médica intensivista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e do Hospital Independência, Ana Carolina Peçanha Antonio diz que a maior preocupação dentro da rotina hospitalar diz respeito ao risco de desabastecimento.
Mesmo com a diminuição do nível do lago Guaíba, a cidade de Porto Alegre continua com pontos de alagamento e conta com uma via para entrada e saída para outras localidades. E as chuvas voltaram. “Esta semana foi extremamente desafiadora. Agora, está ligeiramente mais estável, mas vários insumos estão acabando e a gente está precisando recorrer à literatura médica e usar nossa criatividade para manter o nível de qualidade assistencial que é necessário para o atendimento dos nossos pacientes”, relata.
Ana Carolina conta que o quadro no Hospital das Clínicas, uma unidade de referência em alta complexidade, é mais grave porque a estação de tratamento que abastece a unidade está sem funcionar. Para dar a dimensão do quadro, ela diz que as necessidades são supridas com caminhões-pipa, mas um veículo não consegue preencher 1% do reservatório do hospital.
Com isso, foi determinado que as visitas fossem restritas, teletrabalho para aqueles que não desempenham funções assistenciais e o cancelamento de procedimentos cirúrgicos eletivos, os que não são urgentes. No Hospital Independência, que está com fluxo de água intermitente, foi estabelecido o racionamento.
“Todo o material hospitalar está tendo prejuízo com lavagem e usamos uniformes que deveriam ser descartados, mas temos de usar a mesma roupa.”
Outra situação que preocupou os médicos e demais profissionais foi a escassez de oxigênio, já contornada. “No início da semana, tivemos um racionamento bem intenso de oxigênio e adotamos medidas bem restritivas dentro do limiar de segurança, mas conseguimos um abastecimento ontem.”
Segundo Ana Carolina, os funcionários estão abalados psicologicamente, até porque muitos tiveram perdas materiais e foram resgatados dos telhados de suas casas. Além disso, estão revivendo novamente o temor de perder pacientes, como ocorreu nos tempos da pandemia. Desta vez, por uma tragédia climática anunciada.
“A gente tem muito medo de que piore, porque a previsão é de que o nível do rio aumente. Já está chovendo. Parece um pesadelo. Enfrentamos uma pandemia cruel, perdemos muitos pacientes e, agora que a gente estava tendo uma folga psicológica, Tudo isso de novo”, desabafa a médica. “Estamos muito abalados, ninguém está bem, mas precisamos seguir em frente, lutar e atender da melhor forma possível.”
Colaboração da rede privada
O Hospital Moinhos de Vento, particular e também na capital, está recebendo pacientes inclusive de outros municípios. No último dia 4, o hospital instalou um posto de atendimento médico na Escola Municipal de Ensino Fundamental Grande Oriente do Rio Grande do Sul, no bairro Rubem Berta, que abriga cerca de 300 pessoas que ficaram desabrigadas após a evacuação do bairro Sarandi.
Equipes também fazem atendimento em outro posto implementado na Orla do Gasômetro, que conta com uma sala de estabilização para pessoas resgatadas.
“Com a interdição do Aeroporto Salgado Filho, o heliponto do Hospital Moinhos Vento segue à disposição para enviar e receber donativos, medicamentos e insumos médicos para outras instituições e para a transferência de pacientes. Medicamentos foram enviados ao Hospital Pompeia, de Caxias do Sul; materiais de diálise para o hospital Bruno Born, de Lajeado; bolsas de sangue foram recebidas e direcionadas ao Hospital Ernesto Dorneles; insulinas que chegam na base aérea de Canoas são recebidas no heliponto e enviadas ao Instituto da Criança com Diabetes”, informou, em nota.