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Quando os médicos adoecem: os profissionais contaminados pelo coronavírus

Histórias tocantes de trabalhadores da saúde que se viram, de uma hora para outra, no papel de pacientes

Por Adriana Dias Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 abr 2020, 10h59 - Publicado em 10 abr 2020, 06h00

“O mal-estar começou com uma febrinha e um pouco de tosse. Nada de muito diferente do que estou acostumado a sentir. Tenho sinusite há quarenta anos. Mas no terceiro dia a coisa mudou, acordei prostrado e com dificuldade para respirar. Deu positivo para a Covid-19. Daí em diante tudo se agravou de forma bastante rápida. Eu já estava naquele momento com comprometimento pulmonar. Não me deixaram sair do hospital. Fui internado na unidade semi-intensiva do Sírio-­Libanês. Cogitaram me entubar, mas graças a Deus não foi preciso. Fui medicado com cloroquina, antibióticos e analgésicos. Comecei a melhorar no quarto dia da internação. Aos 60 anos, nunca me senti tão mal. Eu já fiquei doente, tenho stents, mas nada se compara a isso. O mal-estar é tão violento que a sensação no auge da gravidade era que estavam tirando um pedaço do meu corpo. Tratei de dezenas de pacientes infectados, no entanto jamais imaginei que pegaria esse vírus. Trabalho em UTI há 35 anos. Não faço ideia como isso foi acontecer. Mas garanto que voltarei com mais energia para trabalhar do que antes.”

O depoimento do cardiologista Roberto Kalil foi dado a VEJA no fim da tarde do domingo 5 de abril, no quarto 842 do Hospital Sírio-Libanês. Ele permaneceu a maior parte do tempo sentado e interrompeu a conversa diversas vezes com tosse forte e fôlego comprometido. Três dias depois foi para casa, onde deverá se manter isolado até pelo menos o domingo 12. O relato de Kalil, um dos mais renomados profissionais de saúde do Brasil, exemplifica à perfeição a dramática realidade de homens e mulheres na linha de frente do combate à epidemia do novo coronavírus, os médicos infectados. No Brasil, estima-se que pelo menos um em cada dez profissionais de jaleco, incluindo enfermeiras e enfermeiros, esteja contaminado. O país está perto de entrar para o topo de uma dramática lista. Na Espanha, há 20% de contaminação entre profissionais de branco. Na Itália, 15%.

VITÓRIA - Fim do confinamento: David Uip retornou nesta semana para a frente de combate ao coronavírus em São Paulo (Flavio Corvello/Futura Press)

Evidentemente, o vírus não escolhe vítimas — pode-se dizer que seja democrático nesse aspecto —, mas assusta e emociona quando atinge nomes de relevância, de longa carreira, e já idosos. Com mais de 80 anos, Angelita Gama, cirurgiã do Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, foi internada em 18 de março com febre e dores musculares. Em 48 horas precisou ser transferida para a UTI. Aos 70 anos, Raul Cutait, cirurgião do Hospital Sírio-­Libanês, está entubado há cerca de duas semanas. No sábado 4, os médicos chegaram a tirá-­lo da oxigenação artificial, mas no dia seguinte tiveram de religar os aparelhos. Até a última quinta-feira, 9, ambos encontravam-se no setor de emergência, em estado estável.

“Minha primeira sensação quando o teste para a Covid-19 deu positivo foi de culpa. Será que pulei algum passo? Fui inconsequente?”, indaga o cardiologista Fabio Pitta, de 36 anos, do Hospital Albert Einstein e do Instituto do Coração (Incor). “Sinceramente, não sei como peguei. Atendi casos de doentes internados, mas sempre paramentado. Talvez tenha me infectado com pacientes assintomáticos. É muito difícil ser obrigado a me isolar de pessoas que precisam de mim. Se tem uma coisa que me conforta é saber que voltarei forte para a batalha no pico máximo da doença.” Pitta está em isolamento em casa há uma semana.

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LONGA CARREIRA - Os cirurgiões Raul Cutait e Angelita Gama: na UTI (Nelson Antoine/Fotoarena/Arquivo pessoal)

O mau uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) da parte de muitos profissionais é um ponto crucial. Ressalve-se que em vários casos a vestimenta não é adequada por escassez de material, atalho para taxas brutais de infecção. A epidemia nem atingiu o auge no Brasil e as denúncias de desabastecimento já pululam. A Asso­ciação Médica Brasileira recebeu mais de 2 800 queixas de todo o país, 1 000 delas somente no Estado de São Paulo. A maioria (87%) relata a falta das máscaras de proteção do tipo N95, as mais eficazes; 46%, de gorros; 35%, de álcool em gel 70%; e 26%, de luvas. Estudos mostram que a vulnerabilidade dos médicos é provocada também por outro motivo: a enorme quantidade de vírus aos quais eles são expostos. Cargas virais altas estão associadas a maior capacidade de transmissão e severidade no desenvolvimento da doença respiratória.

EM CASA – O cardiologista Fabio Pitta: isolamento doméstico há uma semana (//Arquivo pessoal)

Muitos médicos, por estarem na vanguarda, colados às UTIs, acabam erguendo couraças fisiológicas e psíquicas — condição que não garante imunidade, mas amplia ainda mais, como contraponto, o sofrimento de quem caiu doente, e não pode ajudar o outro, a essência da atividade. Estudo conduzido pelo Hospital da Universidade Médica de Nanjing, na China, revelou que profissionais na lida cotidiana com enfermos graves são mais resistentes a distúrbios psicológicos, e, portanto, mais protegidos. É como se tivessem se fortalecido diante do sofrimento alheio — os mais distantes, um tantinho apartados, apresentaram quadros de alteração do sono e princípio de anorexia.

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“Não tive contato direto com pacientes de Covid-19. Na hora do diagnóstico tive taquicardia. E agora? Vai evoluir?”, diz Evelyn Lucien Brasil, de 41 anos, fisioterapeuta do Hospital Albert Einstein. “Demorei para perceber que podia ser a doença. Fiquei uma semana com cansaço, calafrio, tosse. Perdi o paladar e o olfato e ainda assim achei que pudesse ser um problema neurológico. Há poucos dias voltei a sentir um cheirinho, o do borrifador de lavanda que sempre coloquei na cama.” Evelyn deve sair do isolamento em casa no dia 13.

A VOLTA - A fisioterapeuta Evelyn Brasil: olfato recém-recuperado (//Arquivo pessoal)

Um dos depoimentos mais impactantes de um médico que de uma hora para outra se viu no papel do doente infectado pela nova doença é o do infectologista David Uip, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus, do governo de São Paulo. Em 6 de abril, o primeiro dia do fim do isolamento em casa, ele declarou publicamente: “Este sentimento de você se ver, como médico, infectologista, com uma pneumonia, sabendo que muito provavelmente entre o sétimo e o décimo dia vai complicar, foi um sentimento muito angustiante. Você dormir não sabendo como vai acordar. Felizmente, Deus me ajudou e eu venci a quarentena. Eu tive de me reinventar, tive de criar um David novo. Seguramente mais humilde e sabendo os limites da vida. Quero dizer para vocês que não é fácil ficar isolado. É de extremo sofrimento, mas absolutamente fundamental”. Sim, o isolamento nas próximas semanas é fundamental — para médicos e não médicos.

Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682

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