Os alimentos são remédios?
Ganha força uma nova tendência na nutrição, baseada na ciência: a de considerar a comida como recurso para prevenir e tratar doenças. Mas há exageros
A intuição aguçada do filósofo grego Hipócrates (460 a.C.-375 a.C.) o autorizou, muito antes, evidentemente, dos avanços da medicina, a lançar uma das máximas mais permanentes dos cuidados com a saúde: “Que o seu remédio seja o seu alimento e que o seu alimento seja o seu remédio”. A ideia atravessou séculos, ora ancorada na divulgação da mais milagrosa das dietas, ora debruçada na descoberta dos mágicos poderes terapêuticos de uma fruta, de um legume, de uma semente. A gangorra nunca parou, mas há uma novidade, alheia a modismos: recentes e minuciosos estudos comprovam os reais benefícios dos alimentos no combate e na prevenção de doenças. É ciência pura, em uma das áreas de investigação que mais crescem, no avesso das simpáticas crenças de nossos avós, para quem o leite fechava úlceras e a canja de galinha liquidava gripes. “Hoje, conhecemos melhor os mecanismos de atuação de um alimento no organismo. A comida certa pode melhorar problemas que envolvam excesso de peso, doenças cardiovasculares, fadiga e muitas outras patologias”, disse a VEJA o cardiologista americano Mehmet Oz, o celebrado doutor Oz, um dos grandes entusiastas do tema, que acaba de lançar no Brasil o livro Fuja da Farmácia.
Antes de tudo, e convém afirmar com ênfase, comida não é medicamento — e, na maioria dos casos, não substitui a ação de um composto químico ou de uma intervenção cirúrgica. Não se combate, por exemplo, a insônia pesada com o consumo diário de bananas, fruta com nutrientes que relaxam o corpo. Não dá também para substituir a quimioterapia contra o câncer por doses diárias de alho, apesar da evidente capacidade da planta cujo bulbo ajuda a fortalecer o sistema imunológico do organismo. O extraordinário, agora, é a certeza sobejamente comprovada de que os alimentos podem, sim, ser aliados poderosos e, muitas vezes, protagonistas no combate de enfermidades que matam. A recomendação médica clássica de que uma “dieta equilibrada”, com porções de carboidratos, verduras e proteínas, é suficiente para garantir a saúde tornou-se extremamente simplista diante das evidências atuais — ainda que seja postura de muito bom-senso. Tome-se como exemplo a obesidade. Muitos especialistas continuam a defender enfaticamente o conceito básico de desequilíbrio energético. Ou seja, ganha peso quem ingere mais calorias do que gasta, e ponto.
O jogo é mais complexo. Não se trata mais apenas de medir calorias, de equilibrar o que sai e o que entra. O tipo de alimento ingerido faz toda a diferença — influi na sensação de recompensa, nos picos de glicemia e na atividade do fígado. “Até pouco tempo atrás, as recomendações das sociedades médicas eram simplistas em relação à dieta”, diz o endocrinologista Rodrigo Moreira, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. “Com as novas pesquisas, os médicos se sentem mais seguros para sugerir uma alimentação específica como parte de um tratamento.” Daí ganham espaço, naturalmente, dietas mais inteligentes que as badaladas tempos atrás, como a low carb (que reduz o consumo de carboidratos) ou a dieta mediterrânea (que favorece a comida natural, não industrializada, com destaque para peixes, azeite, grãos e oleaginosas, produtos afeitos a reduzir o LDL, o colesterol ruim).
O papel da alimentação no tratamento e na prevenção de doenças começou a ter respaldo científico muito recentemente. Em 2002, o governo dos Estados Unidos divulgou os resultados de um estudo que comparou pacientes com pré-diabetes que seguiram dieta e faziam atividade física com aqueles que só fizeram o tratamento medicamentoso. Quem cuidou do cardápio se saiu melhor. Outra pesquisa, publicada em The Lancet, há dois anos, foi além. Mostrou que 86% dos pacientes que tinham diabetes e seguiram uma dieta radical tiveram remissão da doença. Ou seja, todos os sinais do problema desapareceram e os ex-diabéticos já não precisariam mais tomar remédios. Há estudos, embora ainda iniciais, que apontam para o sucesso da alimentação adequada na lida contra males autoimunes, como a artrite reumatoide ou a síndrome do intestino irritável. A teoria por trás é que a flora intestinal impacta diretamente o bem-estar do organismo. Um adequado balanço da comunidade de bactérias do aparelho digestivo tende a aliviar os sintomas inflamatórios tão frequentes nas doenças autoimunes.
Os alimentos não são, pura e simplesmente, remédios, porque pesquisá-los foi sempre um enorme desafio, somente agora parcialmente superado. O impacto que um alimento tem sobre o organismo não é tão simples de entender quanto o de um medicamento. “Há diversas variáveis que desempenham um papel determinante na saúde, como genética, exercício, stress. As decisões sobre comida se misturam a todas elas, amplificando algumas e contrabalançando outras, e todas trabalham em conjunto para determinar o bem-estar geral”, diz Oz. Não existiriam, portanto, os chamados superalimentos. Eles são uma ficção. O suco verde já cumpriu esse papel, depois vieram a cúrcuma e o óleo de coco. Agora é a vez do aipo, que já foi apontado como aliado do emagrecimento, rico em vitaminas, com ação antioxidante. Não fazem mal, mas não representam o cobiçado santo graal. “As pessoas buscam um alimento que cura, que é o melhor. Isso não existe”, diz o nutrólogo Eduardo Rauen.
A boa alimentação deve ser celebrada, as recentes descobertas são um notável impulso, novos avanços virão — mas dificilmente terão a decisiva influência, a título de comparação, da penicilina, o primeiro antibiótico de amplo espectro, descoberto por Alexander Fleming na década de 20 do século passado. Um exemplo do que não deve ser feito, na excessiva valorização dos alimentos, é o que ocorreu com Steve Jobs (1955-2011), o gênio criativo da Apple. Em 2003, ele foi diagnosticado com câncer de pâncreas. Adiou sucessivamente as terapias recomendadas, com quimioterápicos, para tratá-lo à base de suco de frutas, ervas e acupuntura. Não deu certo, numa comprovação da eficácia apenas secundária dos alimentos. É bom conhecê-los, é bom saber o que comprovadamente faz bem, mas a comida adequada será sempre complementar a outros cuidados da medicina.
Com reportagem de Giulia Vidale
Publicado em VEJA de 26 de junho de 2019, edição nº 2640
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