O reflexo para os brasileiros da liberação da maconha medicinal
A regulamentação da fabricação, importação e venda de medicações à base de substâncias da droga é passo civilizatório — mas exige responsabilidade
JANELA DE ESPERANÇA
Adriana, mãe de rafaela, de 3 anos, portadora de epilepsia
“Chorei de alegria quando soube da regulamentação. A Rafa ganhou vida com o canabidiol. Desde que ela começou a tomar a medicação, em julho deste ano, as crises de convulsão diminuíram 70%. Ela passou a fazer contato visual, ganhou equilíbrio para andar. Nossa vida era uma luta em função do remédio. O último frasco que encomendei demorou o dobro de tempo para ser liberado na alfândega. Não conseguia fazer estoque, com o preço altíssimo”
A regulamentação do uso medicinal da planta da maconha, aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na terça-feira 3, foi quase como uma fumaça branca, solução ecumênica para agradar a representantes de diversos grupos da sociedade — de médicos a pacientes, de empresários a políticos, apesar da insistente cara feia de integrantes mais ideológicos do governo de Jair Bolsonaro, para quem a Cannabis é um anátema que não deveria ser levado à mesa de discussão, em nenhuma de suas variações. As novas normas passam a valer dentro de noventa dias: será mais fácil importar remédios à base do composto; empresas brasileiras poderão produzir os medicamentos com a matéria-prima; e as farmácias estarão autorizadas a vendê-los, mediante prescrição médica, em embalagens de tarja preta. O plantio foi rechaçado. Estudos recentes mostram que pelo menos 600 000 crianças que sofrem de epilepsia e são refratárias a terapias tradicionais podem ser beneficiadas. Se incluídos os portadores de esquizofrenia e artrite, o número pode subir para 3,4 milhões de cidadãos. “A decisão tem de ser comemorada, do ponto de vista da saúde pública”, diz Carlos Takeuchi, neurologista infantil do Hospital Sabará, em São Paulo. Ele acompanha Rafaela, de 3 anos, que sofre de epilepsia grave e depende do canabidiol, o mais relevante derivado medicamentoso da droga.
O anúncio da Anvisa foi a pedra fundamental de um edifício que começa agora a ser construído. Estima-se, nos cálculos mais otimistas, que o mercado possa movimentar 5 bilhões de reais por ano a partir de 2023. Os valores talvez sejam exagerados, sobretudo porque a proibição do plantio naturalmente encolherá investimentos e achatará os lucros da atividade (além de alimentar situações bizarras e tristes como a da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal, no Rio, que mantém uma plantação ilegal porque de outro modo não conseguiria atender à desesperada demanda).
Mas os ventos são inegavelmente positivos quando se olha para o passado recente e o atual cenário. A importação da medicação, ministrada em gotas, era obtida a duras penas e por valores muito altos. A autorização para trazer um frasco de remédio levava setenta dias, no mínimo, e somente depois de longa travessia burocrática. Desde 2015, quando os juízes começaram a autorizar a compra no exterior, apenas 9 000 brasileiros conseguiram o aval registrado em cartório. O gasto mensal com o tratamento girava em torno de 1 700 reais. “A liberação reduzirá os valores pelo menos à metade”, afirma Caroline Heinz, vice-presidente da empresa americana HempMeds Brasil, produtora e exportadora de remédios com compostos da Cannabis medicinal.
As evidências científicas são sobejamente comprovadas — e foi nelas que a Anvisa se apoiou. O efeito terapêutico da Cannabis é conhecido há milhares de anos, e até o início do século XX não produzia celeuma. No começo da década de 30, contudo, a maconha foi acusada nos Estados Unidos de incitar a violência entre imigrantes mexicanos e corromper a infância. Quando o sistema internacional de controle de drogas, a Convenção Única sobre Entorpecentes, foi instituído pela ONU, em 1961, a aplicação da droga na medicina foi posta no mesmo pacote do uso recreativo — e então a maconha passou a ser tratada como a heroína, um subproduto do ópio, cujos perigos são evidentemente maiores. Foi longa a estrada de reabilitação dos componentes da maconha — no Brasil, por exemplo, durante muito tempo os portadores de epilepsia recorriam à Justiça ou eram obrigados a importar clandestinamente as caixas dos Estados Unidos ou da Europa. Hoje, há uma evidente mudança de tom. Já são mais de trinta os países que regularizaram as substâncias afeitas a lidar com problemas de saúde (veja na pág. ao lado), em especial o canabidiol e o THC. O canabidiol é encontrado no caule e nas flores, e compõe cerca de 1% da planta da maconha. Ele não altera o raciocínio, não produz lapsos de memória nem perda cognitiva. O THC, também regulamentado pela Anvisa, é mais polêmico, por ser psicoativo. Representa cerca de 10% do total de substâncias encontradas no cânhamo. É o THC que dá o barato da droga fumada. Pela característica do composto, os produtos com concentração de THC superior a 0,2% só poderão ser prescritos a pacientes terminais ou que tenham esgotado as alternativas terapêuticas de tratamentos clássicos.
A ruidosa postura dos grupos conservadores tornou o debate nebuloso — em julho, no auge das discussões, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, interlocutor do governo na questão, foi assertivo: “Se abrir as portas do plantio, vai ter consumo generalizado”. Soou um tanto exagerado, demasiado radical, mas no fim das contas a posição do ministro venceu — reafirme-se, não se pode plantar —, e havia alguma razão no raciocínio. Um trabalho recente do Conselho Internacional de Controle de Narcóticos da ONU informa que as estruturas de fiscalização da produção da maconha medicinal são frágeis e invariavelmente transbordam para o consumo recreativo (e não é preciso relembrar os danos à saúde provocados pela droga em estado bruto, em especial entre adolescentes). Outro estudo, publicado na reputada revista JAMA Psychiatry, trouxe um dado desconcertante: a circulação da maconha pelo mero prazer foi 60% superior nos estados americanos que legalizaram as versões farmacêuticas.
É relevante essa constatação de que a Cannabis medicamentosa é um prelúdio para o acesso mais amplo à droga. Ela não deve ser desdenhada, mas também não pode frear um movimento civilizatório, adequado aos novos conhecimentos científicos. A legalização recreativa se expandirá, porém os países que refutam o uso medicinal caminham na contramão. Como anotou a revista britânica The Economist em recente reportagem, “o status legal ambíguo persistirá durante anos, mas a autorização como remédio é o único modo de ir contra uma longa história de preconceito que frustrou pesquisadores e privou milhões de pacientes do acesso a terapias que poderiam ajudá-los”. A autorização da venda em farmácias do canabidiol e, em casos mais específicos, do THC deve ser aplaudida com responsabilidade — sem fumaça.
Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664