Na medicina, existem desafios contra os quais se luta há séculos, sem que os avanços transcorram na velocidade necessária. O campo das doenças hematológicas, que envolvem distúrbios nas células que compõem o sangue, encontra-se nessa categoria. É verdade que se evoluiu de forma relevante em certas áreas — uma delas, a dos tumores. Graças à melhoria nos medicamentos e em procedimentos, como o transplante de medula óssea, é possível chegar a 90% as taxas de cura da leucemia — câncer caracterizado pela proliferação desenfreada de células que dão origem aos glóbulos brancos. Outras enfermidades dessa natureza, no entanto, dependem ainda de transfusões sanguíneas contínuas, o que não é, nem de longe, o ideal. O mais conhecido obstáculo é que os bancos sofrem frequentemente com desabastecimento.
Pois a ciência produziu uma recente descoberta que acende pela primeira vez a esperança de uma virada de página nessa zona de doenças que vitima tanta gente. Especialistas coordenados pelo National Health Service Blood and Transplant, entidade governamental de saúde do Reino Unido, e pela Universidade de Bristol executaram uma transfusão em dois voluntários, de forma pioneira e bem-sucedida, de glóbulos vermelhos fabricados a partir de células-tronco doadas. As hemácias, como os glóbulos também são chamados, transportam o oxigênio pelo organismo.
Trata-se de um feito histórico. Há muito tempo se tentava fabricar células do sangue usando como matéria-prima as células-tronco, uma espécie de folha em branco presente no corpo com a qual se pode criar uma boa diversidade de tecidos. Na experiência britânica, elas foram extraídas de doadores e, em laboratório, induzidas a se converterem em hemácias. Em seguida, multiplicaram-se e foram infundidas em dois voluntários saudáveis. Ambos estão bem. O plano agora é expandir tão festejado ensaio clínico para dez participantes e só então iniciar pesquisas com pacientes.
Na etapa atual, o objetivo do estudo é verificar a durabilidade das células. “Esperamos que elas sobrevivam por mais tempo do que as obtidas por doações”, afirma o chefe do experimento, Cedric Ghevaert, da Universidade de Cambridge. “Se formos bem-sucedidos, os pacientes precisarão de menos transfusões.” Até lá, contudo, os pesquisadores precisarão superar um punhado de dificuldades. Uma delas é encontrar caminhos para aumentar a produção — para se ter ideia, o esforço todo rendeu a infusão do equivalente a duas colheres de chá de sangue em cada voluntário, enquanto em uma doação obtém-se cerca de quarenta vezes isso.
A história da ciência é enfática em sustentar que grandes saltos exigem um passo a passo rigoroso e tempo para que o conhecimento se consolide. No caso das doenças sanguíneas, os médicos anseiam por tentar acelerar o máximo possível esse processo. “Atualmente, esses pacientes têm uma qualidade de vida muito ruim”, reconhece a hematologista pediátrica Marimilia Pita, idealizadora da ONG Lua Vermelha, entidade voltada para dar visibilidade à anemia falciforme. De origem genética hereditária, a doença é uma das que muito se beneficiariam com o sangue fabricado. Hoje, tais pacientes são obrigados a se submeter a transfusões frequentes para evitar os efeitos causados pela deformação das hemácias, que adquirem aspecto de foice e se aglomeram nos vasos, causando interrupção do fluxo e da oxigenação dos tecidos. Já para os bancos de sangue, a possibilidade de contar com uma “fábrica” proporciona imenso alívio. A Fundação Pró-Sangue, que abastece mais de oitenta instituições da rede pública de São Paulo, opera com déficit de cerca de 1 500 bolsas de sangue por mês. O Hemorio, por sua vez, carece de 300 doações diárias. Isso enfatiza a importância de que a roda da ciência siga girando rápido em busca de esperança.
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819