A humanidade sonha desde que se entende por gente e, há alguns milênios, busca decifrar o que os filmes rodados para um único espectador na sala privada da mente têm a dizer. Essas narrativas, muitas delas sem pé nem cabeça, seduziram, atormentaram e instruíram homens e mulheres das mais antigas civilizações — marcando presença nos textos fundadores da nossa cultura, como A Epopeia de Gilgamesh, a Bíblia e a Odisseia — até os dias de hoje, em que, com o apoio de sensores e máquinas inteligentes, é possível mapear o que ocorre no cérebro quando nos entregamos ao sono. Para Sigmund Freud (1856-1939), a figura que revolucionou o entendimento sobre os sonhos, eles seriam a via incontornável para o inconsciente. Mais de 100 anos depois de publicar o livro que chacoalhou a interpretação do fenômeno, o pai da psicanálise se regozijaria com o enfoque que a neurociência tem dado ao assunto, devidamente munida de instrumentos que permitem sondar os neurônios para responder a alguns dos mistérios que ainda pairam nos recessos da psique.
Tema em destaque nos últimos congressos da área, os sonhos vivem um despertar que não se apoia apenas em teorias, mas também nos resultados de uma série de pesquisas conduzidas em laboratório. E esse admirável mundo novo pode ser explorado em dois volumes que chegam ao Brasil. Em Por que Sonhamos (Editora Sextante), o neurocirurgião americano Rahul Jandial oferece um panorama sobre o papel dessas experiências na saúde, no desenvolvimento emocional e nos processos criativos. Já o neurocientista sul-africano Mark Solms constrói uma ponte entre a neurologia e a psicanálise em A Fonte Oculta (WMF Martins Fontes), obra que examina de onde vêm os sonhos e que sensações e sentimentos são registrados ou não pela consciência. Há mais coisas se passando no cérebro do que supunha nossa vã filosofia.
Jandial traz à tona a ideia de que sonhar não é somente uma manifestação do subconsciente, mas um processo essencial para o funcionamento e o equilíbrio mentais. “O cérebro, durante o sono, não descansa. Ele está em seu estado mais criativo”, disse a VEJA. É nesse momento que o órgão processaria emoções e memórias e, o mais relevante, criaria simulações do que pode vir a acontecer. “Quando sonhamos, estamos ensaiando múltiplas versões de nós mesmos diante de cenários desafiadores”, afirma Jandial. Esses “testes”, por mais estranhos que pareçam, nos preparam, assim, para situações futuras e hipotéticas. São os “oráculos da noite”, para utilizar a expressão do neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro.
O autor de Por que Sonhamos bate na tecla de que os sonhos operam uma espécie de treinamento emocional, ajudando a cultivar a resiliência diante dos percalços da vida. Eles permitem ensaiar respostas para quando formos confrontados com dilemas, perdas e medos profundos. Fora isso, realmente exercem um poder criativo. Um caso emblemático, citado pelo neurocirurgião, é o do farmacologista alemão Otto Loewi (1873-1961), que sonhou com o experimento que o levou à descoberta dos neurotransmissores, um marco digno de Prêmio Nobel. “Os sonhos libertam o cérebro das restrições lógicas que temos durante o estado de vigília”, diz Jandial. “Isso nos permite conectar ideias aparentemente desconexas e criar soluções inovadoras.” Eis, aliás, um dos trunfos da evolução, da inteligência e da capacidade de adaptação humana — e um motor para a arte e a ciência.
Da mesma forma, os pesadelos também teriam um papel a cumprir. Ainda que perturbadores e desconfortáveis, eles nos sintonizariam para situações de perigo. De novo: o cérebro oferece, na calada da noite, um treinamento para as adversidades, ainda que as da vida real não sejam idênticas àquelas que se passam na caixa escura da mente. A sacada é ensinar o organismo a como reagir às intempéries. Não se trata de profecia, como queriam os sábios antigos, mas de preparação para o que está por vir.
O padrão dos sonhos e pesadelos — e das ondas cerebrais ativadas por eles — também tem vocação como ferramenta diagnóstica e terapêutica. Isso porque redes neurais continuam em ebulição madrugada adentro, fornecendo pistas da saúde cognitiva e emocional. Ao acordar, muitas vezes carregamos um resíduo do que ocorreu no plano onírico, informação bem-vinda ao autoconhecimento e às sessões de terapia.“Os sonhos são uma experiência extremamente valiosa para conhecermos nosso mundo interior”, diz Ribeiro. Que assim seja.
O neuropsicólogo sul-africano Mark Solms é o sujeito que reconciliou, digamos assim, a psicanálise com a biologia. Graças aos seus estudos, hoje sabemos que existe um circuito cerebral responsável pelos sonhos, o sistema dopaminérgico mesocortical-mesolímbico. O nome assustador se refere a uma rede de neurônios que, sob influência da dopamina, também regula o prazer, a recompensa e a motivação. Sim, está tudo conectado. Em A Fonte Oculta, Solms reforça que o cérebro, enquanto sonha, está em um estado de integração profunda entre áreas responsáveis pelas emoções e aquelas envolvidas na memória. Isso significa que os sonhos não apenas exploram experiências passadas, mas também fazem ligações inéditas entre sentimentos não processados. Não é à toa que um sono completo e reparador, aquele que consegue atingir os estágios propícios aos sonhos, é fundamental para o bem-estar cognitivo e mental. Faz uma faxina nos entulhos de informação e acomoda o que realmente importa.
Diante dessas funções e potenciais reconhecidos, não é de estranhar que o futuro das pesquisas caminhe para uma espécie de “sonhoterapia”. Se no passado a intuição era correta, mas os meios de execução, quase místicos, agora existe tecnologia para inspecionar e acionar o cérebro enquanto dormimos. Por meio de métodos de monitoramento neurológico, os cientistas estão começando a mapear como diferentes padrões de sonho se correlacionam com condições como depressão, ansiedade e outros transtornos. Em alguns estudos, o conteúdo e a qualidade desses eventos foram usados como indicadores de melhora ou piora no quadro clínico. Isso abre uma avenida para novas abordagens diagnósticas e terapêuticas. No Reino Unido, especialistas já testam a manipulação de ondas cerebrais durante o sono REM — fase que concentra a maioria dos sonhos — como uma forma de tratar e minimizar a demência.
Ainda que essa sonhoterapia high-tech esteja em estágios iniciais, as perspectivas são animadoras. Imagine um futuro em que, em vez de apenas relatar seus sonhos a um terapeuta, você pudesse ter essas narrativas analisadas em tempo real por um dispositivo eletrônico. A neurociência está cada vez mais próxima de transpor essa ideia à realidade. Um exemplo disso é o trabalho do pesquisador japonês Yukiyasu Kamitani, que vem, ao longo de duas décadas, desenvolvendo uma técnica para decodificar sonhos e transformá-los em imagens. Kamitani e sua equipe utilizam algoritmos de inteligência artificial e exames de ressonância magnética funcional para registrar a atividade cerebral e correlacioná-la com as figuras sonhadas pelos seus pacientes. Ao acordar repetidamente os voluntários e perguntar sobre as imagens que viram antes de despertar, o grupo de estudiosos consegue treinar a máquina para detectar padrões neurológicos e reconstruir esses frames do sonho. “É totalmente concebível que, na próxima década, possamos pegar a atividade cerebral de alguém que está sonhando e traduzi-la numa reprodução visual”, afirma Jandial.
Ao longo da história, os sonhos têm sido vistos como uma janela para o inconsciente e o amanhã, e as novas descobertas científicas estão fortalecendo essa visão. O que as pesquisas nos mostram é que eles são mais do que meros produtos da imaginação — são peças essenciais para entender e montar o quebra-cabeça da mente humana. Os insights gerados na interação com pacientes e nas análises em laboratório indicam que os sonhos não apenas atuam como um suporte para os perrengues e as agruras do cotidiano, mas também como combustível para nossa inteligência emocional e social. Se os heróis do passado venceram ciladas e concluíram suas missões, foi também graças às ideias e habilidades plantadas pelas suas vivências oníricas. É curioso: a noção de que sonhar não custa nada não se sustenta por completo se pensarmos que, durante o sono, neurônios estão gastando energia para preparar a mente para o que der e vier. O que a medicina está tentando fazer agora é reconhecer esse trabalho e aproveitá-lo para enfrentar, com maior acurácia, uma legião de males que vai de traumas a comprometimentos cognitivos.
Freud muito provavelmente não estava certo sobre os mecanismos exatos que regiam os sonhos — e ele mesmo anotou, com humildade, que parte de seus achados poderia ser revisitada ou revirada quando a ciência tivesse os instrumentos apropriados. Mais de um século depois, a nova fronteira do conhecimento e da prática clínica reside em aprender a usar os sonhos como um recurso ativo no cuidado com a saúde. Se as pesquisas continuarem a render frutos, não seria uma viagem imaginar que aquela caixa de mistérios possa se transformar em uma ferramenta de autodesenvolvimento e um antídoto contra doenças e pesadelos da vida real.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912