O Brasil está prestes a dar um passo importante no tratamento da anafilaxia, a reação alérgica mais grave que pode levar à morte sem uma intervenção imediata. Durante o 51º Congresso Brasileiro de Alergia e Imunologia, será apresentada a primeira caneta de adrenalina autoinjetável desenvolvida no país. Atualmente, pacientes precisam importar o dispositivo, enfrentando altos custos que chegam a R$ 3 mil ou R$ 4 mil, o que inviabiliza o acesso para a maioria da população. O uso no país, no entanto, ainda depende de análise e aprovação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A anafilaxia é uma emergência médica que pode ser desencadeada por alimentos, picadas de insetos e medicamentos. A adrenalina é o único medicamento que trata todos os sintomas da anafilaxia. “A caneta autoinjetora de adrenalina é indispensável para quem corre risco de anafilaxia, pois permite um tratamento rápido que pode salvar vidas, ganhando tempo até a procura por ajuda médica”, afirma Fábio Chigres Kuschnir, presidente da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai).
Entre 2011 e 2019, houve quase 6.000 internações por anafilaxia, com um aumento anual de 2,4%. A maioria dos casos ocorreu em mulheres e adultos entre 30 e 59 anos. Crianças pequenas foram mais afetadas por reações a alimentos, como leite e ovo, enquanto os adultos enfrentaram mais reações severas a medicamentos, como analgésicos e anti-inflamatórios, muitas vezes adquiridos sem receita. No período, 334 pessoas morreram, evidenciando um crescimento preocupante das mortes por anafilaxia no país.
“Há 30 anos, víamos poucos casos de alergia a leite de vaca em crianças por ano; hoje, vejo o mesmo número em apenas uma semana”, disse ele, enfatizando que a qualidade de vida das famílias de crianças alérgicas é muito comprometida, pois vivem em constante alerta para evitar reações graves, afirma Kuschnir.
O pesquisador e neurofisiologista Renato Rozental, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que coordena a equipe responsável pelo desenvolvimento da caneta, observou que o dispositivo autoinjetável já é amplamente encontrado em regiões como Europa, América do Norte e Ásia, levantando a questão de por que demorou tanto para ser produzido no Brasil. Rozental mencionou que, desde 2018, opções genéricas surgiram no exterior e reduziram os custos internacionais, mas esses valores ainda são altos para a realidade brasileira. “Importar uma caneta por R$ 3 mil ou R$ 4 mil é algo fora da realidade”, afirmou.
Produção nacional: autossuficiência e redução de custos
A fabricação da caneta no Brasil é vista como um marco estratégico para a saúde pública. “A produção nacional não só reduz custos, mas também fortalece a capacidade de produção, assegurando a continuidade do fornecimento mesmo diante de crises internacionais e oscilações cambiais”, explica Rozental. Além disso, a produção interna ajuda a estabilizar os preços e torna o tratamento mais acessível a um número maior de pessoas, com um custo estimado de R$ 400 — muito abaixo do valor de importação.
Outro ponto importante é a independência tecnológica e econômica que a fabricação local proporciona. Ao produzir o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) e os componentes do dispositivo no país, o Brasil fortalece sua capacidade de inovação. Tudo isso permite que o Sistema Único de Saúde (SUS) amplie a oferta do dispositivo. “Com a produção local, espera-se uma democratização do acesso, promovendo a segurança em saúde para todos”, complementa Rozental.
Projetos de lei em discussão
Dois projetos de lei em trâmite buscam apoiar a democratização do acesso à caneta de adrenalina e melhorar a resposta a casos de anafilaxia, integrando-se diretamente à nova produção nacional. O projeto de lei 1945/21 propõe a notificação obrigatória de casos de anafilaxia ao Ministério da Saúde, com o objetivo de criar um cadastro nacional de pacientes. Essa medida é crucial para mapear a extensão do problema, melhorar o planejamento de políticas públicas e garantir que a produção nacional possa atender à demanda real de forma eficiente.
“Ter um cadastro nacional com dados precisos permite aprimorar o diagnóstico, o tratamento e o acompanhamento, o que pode salvar milhares de vidas”, afirma Kuschnir.
O projeto de lei 884/24, que sugere a inclusão da caneta autoinjetável na lista de medicamentos oferecidos pelo SUS, complementa a produção local ao viabilizar seu fornecimento gratuito em todo o território nacional. Isso assegura que, com a fabricação nacional a preços mais acessíveis, a caneta chegue a todas as regiões do país, beneficiando principalmente as áreas mais remotas e comunidades vulneráveis.
“A inclusão da caneta no SUS pode reduzir o número de internações e proporcionar um atendimento mais igualitário, mas será necessário enfrentar desafios como o custo de produção e a logística de distribuição”, explica Rozental.
Desafios e expectativas futuras
Apesar dos avanços, ainda existem obstáculos a serem superados para a implementação eficiente da distribuição. Como a conscientização e o treinamento adequado de pacientes e profissionais que são fundamentais para que a caneta seja usada de forma correta e eficaz. Ainda existe a necessidade de uma infraestrutura sólida para a gestão das canetas, garantindo uma distribuição contínua e sustentável.
Rozental mencionou que a aprovação pela Anvisa pode ser facilitada pelo recente acordo de confidencialidade assinado com a FDA, agência reguladora dos Estados Unidos. Esse acordo permite a troca de informações comerciais confidenciais sobre medicamentos, o que pode agilizar a análise e aprovação de produtos no Brasil, incluindo a caneta de adrenalina autoinjetável.
“Temos a capacidade de ter essa caneta pronta para distribuição em 11 meses, mas a aprovação depende das discussões que ocorrerão no congresso em Salvador”, explicou.
É indiscutível que a introdução da caneta de adrenalina autoinjetável brasileira representa mais do que uma inovação tecnológica. É um compromisso com a saúde pública e a equidade no acesso ao tratamento. Com a expectativa de aprovação pela Anvisa e a tramitação dos projetos de lei, o país pode entrar em uma nova fase de preparo e resposta a emergências médicas, salvando vidas e promovendo um sistema de saúde mais inclusivo e eficiente.