Por que o número de pessoas com alergias está em disparada no mundo
O maior motivo são as mudanças nos hábitos e no ambiente deflagradas pela própria humanidade
Uma tragédia particular instigou a pesquisadora americana Theresa MacPhail a fazer um mergulho investigativo em um drama que, segundo estimativas, afeta cerca de um terço da população global. O pai da antropóloga médica morreu abruptamente após um choque anafilático — reação do organismo marcada pela obstrução das vias respiratórias — desencadeado por uma picada de abelha. Também alérgica, Theresa decidiu buscar respostas sobre como o corpo humano pode reagir de modo tão intempestivo a elementos aparentemente inofensivos como um alimento ou pó doméstico. Mas seu trabalho de detetive junto a médicos, cientistas e pacientes a levou a uma segunda questão: por que o número de gente com rinite, dermatite e outras doenças caracterizadas pela hipersensibilidade do sistema imunológico não para de crescer?
As explicações para esse quebra-cabeça estão no livro Alérgicos (Editora BestSeller), recém-lançado no Brasil. Alergias são uma reação exacerbada das nossas células de defesa a partículas que, no geral, não deveriam nos fazer mal — uma lista extensa que envolve de proteínas da comida (leite, ovos, frutos do mar…) a ácaro e pólen. Na ânsia de atacar o “invasor”, as forças de segurança interna provocam um tumulto inflamatório, resultando em sintomas diversos. Algumas pessoas desenvolvem rinite, outras asma. Há quem tenha alergia alimentar e quem sofra de dermatite atópica. São quadros que, em comum, sabotam a qualidade de vida e tornaram-se bem mais frequentes nas últimas décadas. As alergias são a doença do mundo moderno por excelência — e, com as mudanças climáticas, tudo indica que persistirão nos atormentando.
Há uma série de desafios em torno delas, um assunto que continua intrigando os especialistas pela sua complexidade e pelas constantes exceções às regras. Primeiro, dificilmente conseguimos prevenir o problema, uma vez que ele é fruto de um mosaico de influências genéticas, ambientais e comportamentais. Segundo, ainda que existam exames para apurar o tipo de alergia, nem sempre os testes são precisos e acessíveis. Terceiro, embora casos mais leves sejam domados com os recursos disponíveis, os tratamentos clássicos para os quadros mais severos não raro falham depois de um tempo. E, o pior, são condições que, no geral, começam a se manifestar na infância ou na juventude e seguem em ascensão, podendo se tornar ainda mais penosas quando se mora numa cidade imersa em ar sujo. “O que mais me surpreendeu na pesquisa para o livro foram as descobertas sobre os efeitos de longo prazo da poluição atmosférica”, diz Theresa. “O material particulado ultrafino dos poluentes tem a capacidade de ajudar alérgenos como o pólen a entrar mais profundamente nos pulmões.”
A principal hipótese que tenta esclarecer o boom alérgico é a teoria da higiene. Em resumo, devido a vacinas, antibióticos e antissépticos, conseguimos eliminar tantos germes que, sem esse contato antes corriqueiro quando crianças, nosso sistema imune passa a encarar qualquer bobeira como um inimigo. É o que tem ocorrido quando algumas proteínas da comida embarcam goela adentro. “Acompanho as alergias alimentares há 25 anos e observo que estamos vivendo uma espécie de epidemia: há aumento de casos, novos alimentos causando reações, manifestações ainda mais heterogêneas e quadros mais persistentes”, diz a alergista Renata Cocco, da Faculdade de Medicina Albert Einstein, em São Paulo.
Diante dessa avalanche de diagnósticos — são 250 milhões de pessoas com alergia alimentar no planeta, outros 300 milhões com asma e mais 400 milhões com rinite, segundo a OMS —, a medicina persegue soluções. Um divisor de águas são os medicamentos imunobiológicos, já aprovados para dermatite atópica, por exemplo. Em novo estudo, cientistas demonstraram que um anticorpo monoclonal, o omalizumabe, foi bem-sucedido na contenção de múltiplas alergias disparadas por alimentos. Confiante na ciência, Theresa acredita, contudo, que o maior dilema atual resida na prevenção. “Precisamos descobrir um modo de intervir na infância para encorajar nossas células a desenvolver tolerância a uma grande variedade de coisas com as quais temos contato”, diz. Que a resposta a esse mistério não demore a chegar.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888