Demorou, mais de cinquenta países chegaram na frente, mas finalmente o Brasil começou a campanha de vacinação contra a Covid-19. Sim, houve evidente disputa política entre o presidente Jair Bolsonaro, totalmente equivocado no seu posicionamento, e o governador de São Paulo, João Doria, que merece elogios pelo seu. Há ainda, é verdade, insistentes ecos de vozes avessas à imunização e, claro, o processo está apenas começando — mas as doses de sensatez felizmente parecem estar fazendo efeito. Já era hora. Afinal de contas, apenas com a vacina o país poderá cuidar simultaneamente da saúde de seus cidadãos e da economia, com retorno à normalidade. Tal travessia será longa, mas não pairam mais dúvidas sobre a solução. Acima de todos os dogmas, de todas as ideologias, e apesar das dificuldades logísticas que se apresentam, este momento é de otimismo e… agulhas. “Não tenham medo”, disse a enfermeira paulistana Mônica Calazans, de 54 anos, a histórica pioneira da primeira agulhada. “Que a população acredite na vacina, estou falando agora como mulher, brasileira, mulher negra: acreditem na vacina. Vamos pensar no monte de vidas que nós perdemos, quantas famílias nós perdemos, quantos pais, mães, irmãos.”
A fala de Mônica, ao olhar com dor para o passado e com esperança para o futuro, serve de espelho para o modo como toda a sociedade deveria se comportar daqui para a frente. Há um único caminho: celebrar essa robusta vitória da ciência, que em menos de um ano produziu vacinas contra o coronavírus, usufruindo sua criação. Trata-se, por sinal, de uma oportunidade perfeita para a consagração de duas instituições brasileiras de respeito mundial — o Instituto Butantan, que em parceria com a chinesa Sinovac desenvolve a CoronaVac, e a Fiocruz, de mãos dadas com as britânicas Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca. Em sua própria gênese, tanto o Butantan como a Fiocruz lutaram contra o obscurantismo. Em 1899, um surto de peste bubônica, que se propagava a partir do Porto de Santos, levou a administração pública estadual a criar um laboratório de produção de soro em um local então conhecido como Fazenda Butantan. Houve muita reclamação, desconfiança descabida, mas o médico Vital Brazil, escolhido para liderar a empreitada, seguiu em frente. A Fiocruz nasceu em 1900, como Instituto Soroterápico Federal, dirigido pelo jovem bacteriologista Oswaldo Cruz, de apenas 28 anos. Em 1904, ele enfrentaria a chamada Revolta da Vacina, deflagrada por camadas da população que não queriam receber a vacina contra a varíola. Brazil e Cruz não recuaram e, a partir deles, nosso país se tornou referência mundial em política de imunização coletiva. Assim deve ser, agora mais do que nunca — embora ainda existam vários desafios, como se lê na reportagem a partir da página 24. Mas, como disse a enfermeira Mônica, “não tenham medo”. Nós vamos vencer a pandemia. Para isso, o Brasil precisa apenas de união e muito trabalho — não de preconceitos, discursos de ódio, ignorância e desavenças.
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722