Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Stalin e Hamlet

Os ditadores não costumam apreciar dúvidas metafísicas

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 15 jun 2018, 06h00 - Publicado em 15 jun 2018, 06h00

Josef Stalin gostava de ir ao teatro. Suas preferências eram, digamos, conservadoras: ele tinha forte pendor ao drama clássico, à ópera e ao balé. No Kremlin stalinista, inúmeras recepções desenrolaram-se ao som de concertos estritamente tradicionais. No palco, Stalin preferia histórias de heroísmo e bravura; uma de suas peças favoritas era A Guarda Branca, de Mikhail Bulgakov, que retrata a vitória do bolchevismo na Ucrânia. Havia, contudo, uma grande peça canônica à qual Stalin votava um desprezo proverbial: não era outra senão Hamlet, considerada por muitos como a maior obra-prima da literatura dramática.

Na década de 40, a tragédia do príncipe dinamarquês foi traduzida ao russo, em belos versos rimados, pelo escritor Boris Pasternak — que mais tarde ganharia fama mundial com o romance Doutor Jivago. Na época, o então famoso ator russo Boris Livanov tentou levar a tradução de Pasternak ao Teatro de Arte de Moscou. Certa noite, após o início dos ensaios, Livanov foi convidado a um banquete no Kremlin. Stalin, como de hábito, andava de mesa em mesa, trocando palavras com os convivas e fazendo brindes cordiais. O ator resolveu perguntar o que o grande líder achava da peça shakespeariana. Segundo um relato recolhido pelo ensaísta Isaiah Berlin em Impressões Pessoais (1980), Stalin teria respondido: “Não sou especialista em teatro, mas Hamlet é uma peça decadente e jamais deveria subir aos palcos”. Seja por coincidência, seja por consequência, o fato é que a produção de Livanov foi cancelada logo depois. O ditador soviético voltaria a expressar seus instintos anti-hamletianos após a filmagem de Ivan, o Terrível, Parte 2, de Serguei Eisenstein. Stalin odiou o filme e proibiu sua exibição: segundo ele, o grande autocrata fora retratado como um sujeito fraco, indeciso, corroído por dúvidas insolúveis. “Parece Hamlet!”, vociferou o frustrado espectador.

Afinal de contas, por que Stalin detestava o príncipe da Dinamarca? Não havia censura oficial a Shakespeare entre os bolcheviques: apreciado por Marx e Lenin, o Bardo foi um dos escritores mais lidos e respeitados na União Soviética. O desgosto de Stalin era pessoal. Suponho que nenhum ditador goste muito de dúvidas metafísicas: as tiranias se constroem com certezas absolutas. O escárnio infinito de Hamlet, que ameaça os fundamentos do universo e do próprio intelecto humano, só pode parecer escandaloso a quem pensa deter a resposta final para todas as perguntas.

A tradução de Pasternak só seria integralmente encenada após a morte de Stalin, em 1953; a segunda parte de Ivan, o Terrível — talvez a melhor obra de Eisenstein — também esperou mais de uma década para chegar aos cinemas. Seja como for, o filme, a peça e os versos sobreviveram ao terror e à repressão; já a ditadura stalinista ruiu em algumas décadas. A fraqueza de Hamlet, no fim das contas, revelou-se uma espécie de força — o tipo de força capaz de assustar os mais poderosos déspotas, em todos os reinos onde haja algo de podre, no passado e no futuro.

Publicado em VEJA de 20 de junho de 2018, edição nº 2587

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.