Quando eu estava filmando o documentário Quebrando o Tabu, entrevistei o médico Dartiu Xavier da Silveira, referência no estudo de drogas, que era o tema daquele meu trabalho. Ele me revelou um dado tão difícil de digerir que eu não consegui incorporá-lo na edição do filme. Explico: como diria o publicitário David Ogilvy, comunicação não é o que você fala, mas sim o que os outros entendem, e o que ele me disse era tão estranho aos meus ouvidos que deixei de usar a informação porque NÃO queria ser confundido com alguém interessado em fazer apologia do uso de drogas.
O doutor Dartiu me mostrou um estudo de Norman Zinberg, professor de psicologia da Universidade Harvard, que descrevia um grupo de usuários de heroína capaz de consumir doses tão baixas da droga que seu uso era considerado não abusivo. O relato me pareceu tão chocante que achei melhor deixá-lo de fora — naquela época, qualquer menção à ideia da descriminalização das drogas já parecia apologia. Fui com calma.
E calma é o ponto central deste texto. Quem conheceu meu pai, Mario de Andrade, que foi jornalista da Abril, sabe que ele era absolutamente apaixonado pela revista Playboy, que dirigiu, pelos seus colegas, pelo seu trabalho. Mas errou a dose nessa paixão. Dizem os amigos que morreu aos 46 anos vivendo mais de uma vida de uma vez só. Era um workaholic convicto — do tipo que fazia reunião de pauta na sauna com os colegas.
Eu também errei a dose na minha vida muitas vezes. Uma delas foi com refrigerante. Tomava cinco latas por dia. Aos 30 anos, quebrei o calcanhar e descobri que tinha osteoporose — adquirida, segundo hipótese dos médicos, pelo consumo excessivo de — vejam só — refrigerante. Estava corroendo meus ossos.
Tenho grandes amigos artistas, empresários, banqueiros que fazem uso não abusivo de Cannabis — não vou falar o nome de vocês, fiquem tranquilos 🙂 — e tenho também vários amigos que se derreteram por, na gíria dos meus amigos mais velhos, “puxar fumo” demais. Tenho ainda outros que ficaram podres de ricos ou fizeram sucesso fumando numa boa.
Quero dizer com isso que, remédio ou veneno, tudo na vida é questão de dosagem. E é assim que sinto o debate político hoje no Brasil: envenenado. Acho lamentável o ódio que carregam as palavras de alguns dos meus amigos ligados ao mercado financeiro sobre os movimentos de esquerda — dão a impressão de não querer ouvir, aprender, conversar e avançar com aqueles que estão mais próximos dos que nasceram sem sorte. E a recíproca é verdadeira. De alguns dos meus amigos mais alinhados à esquerda, em quem vejo justa e intensa preocupação com a defesa de direitos, ouço que a questão das contas públicas, da eficiência e gestão é “papo de coxinha”. Eu, que sou gay, cineasta, empresário, brasileiro, apaixonado por este país, fico assim, com altas doses de preocupação e desejando uma boa dose de afeto e bom-senso para um diálogo que ajude a catar os cacos do nosso país.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2017, edição nº 2560