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O paradoxo da fome, uma doença nacional

Durante décadas, a desnutrição desafiou governos e condenou gerações ao subdesenvolvimento em um país capaz de produzir fartura para a mesa

Por Giulia Vidale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 20 jul 2018, 06h00 - Publicado em 20 jul 2018, 06h00

Pode parecer um paradoxo — e é —, mas um olhar detido sobre a alimentação no Brasil nas últimas décadas deve começar por seu oposto: a fome. Não por acaso esse foi o enfoque de VEJA ao tratar do tema pela primeira vez. “A fome é uma doença nacional”, dizia a reportagem de 18 de outubro de 1972. O diagnóstico resumia uma mensagem dos ministros do Planejamento, Trabalho, Educação e Saúde enviada ao general-presidente Emílio Garrastazu Médici para justificar a proposta de criação no país de um órgão voltado aos estudos nutricionais, o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição. A ele caberia lançar o Programa Nacional de Alimentação e Nutrição, cujo objetivo era assistir milhões de mães, gestantes, nutrizes e crianças. Àquela altura, a desnutrição dos brasileiros tinha uma singularidade: estava mais associada ao baixo aporte de calorias do que à deficiência de um grupo alimentar específico, como as proteínas. No entanto, dizia VEJA, em grande parte do Nordeste, o problema era mais “de fome pura e simples do que de vícios e deficiências de alimentação”. Em Engenho Serra (PE), a revista acompanhou o almoço de uma mãe e seus sete filhos: “para todos, uma única vasilha de feijão com farinha”.

Quase dez anos depois, em 29 de julho de 1981, VEJA trazia em sua reportagem de capa o que chamou de “o enigma dos alimentos”, representado pelo alto preço deles ao consumidor. Naquele ano, pelo segundo período consecutivo, o Brasil havia colhido uma safra excepcional: 54 milhões de toneladas de arroz, feijão, milho, soja e trigo. Com isso, o país se tornara o segundo maior produtor de soja do planeta, o terceiro de milho e de feijão, o oitavo de arroz e o nono de trigo. Comer porém jamais custara tão caro por aqui. A reportagem mostrava que, tomando como base um salário médio de 17 000 cruzeiros mensais (1 800 reais hoje), o brasileiro trabalhava, em média, três horas e quarenta minutos para comprar 1 quilo de carne, 59 minutos para uma dúzia de ovos e 34 minutos para 1 quilo de arroz. Já os americanos precisavam apenas de 51 minutos, sete minutos e dez minutos para adquirir os mesmos alimentos. A razão disso? Fatores enraizados na economia nacional, como a presença de intermediários, especulação, transporte, custo dos insumos e conflitos de interesses. O resultado soava como uma autêntica contradição: um país “com tudo para produzir comida farta e barata” continuava mantendo-a distante de boa parte da população.

1972, 1981, 1993 - Uma reportagem especial e duas capas de VEJA dedicadas ao assunto: retratos do problema e de seu enfrentamento (//VEJA)

Embora a fome já apresentasse sinais de que deixaria de ser uma “doença nacional” ainda na década de 80, no Nordeste o quadro não cedera, como destacava a capa de VEJA de 17 de agosto de 1983. Na ocasião, a região batera seus próprios recordes de miséria após cinco anos de seca. Quando havia comida, a dieta básica dos nordestinos era uma papa ou caldo feitos com farinha e água ou óleo. Na falta disso, a alternativa era lamber pedras de sal. Até a palma, um tipo de cacto usado como alimento para o gado, transformara-se em ingrediente na panela. O contexto dramático deflagrou uma triste descoberta científica: o impacto brutal da fome se perpetua na estrutura física. Um estudo de 1987 publicado no livro Nordeste Pigmeu — Uma Geração Ameaçada (Ed. Oedip), do pediatra Meraldo Zisman, revelou que o peso dos filhos dos nordestinos que passavam fome vinha caindo. Em 1966, o peso médio de um bebê recém-nascido no Recife variava de 3,1 a 3,2, quilos. Em 1986, caiu para 3 quilos. Em 1990, chegou a 2,9 quilos. Esse peso equivalia ao dos pigmeus africanos, que atingem no máximo 1,40 metro de altura. Mais: 80% das crianças que nascem com peso baixo devido à desnutrição da mãe e não comem o suficiente nos primeiros quatro anos de vida não conseguem recuperar os padrões mínimos de crescimento. A marca da fome torna-se indelével.

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Em 1993 havia 32 milhões de desnutridos no país. Foi diante desse quadro que o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), ONG idealizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, “conhecida popularmente como Campanha contra a Fome ou, simplesmente, Campanha do Betinho”, conforme assinalou VEJA na edição de 29 de dezembro daquele ano. A reportagem, um longo perfil do sociólogo, sublinhava “o efeito arrastão do movimento” e “a canonização” de Betinho. Em 1996, a ONU encerrou aqui o seu Programa Mundial de Alimentos. Dois anos mais tarde, a revista voltou ao assunto ao retratar, na capa da edição de 6 de maio, a seca que, novamente, castigava o Nordeste. Dessa vez, contudo, o impacto em relação à fome foi menor. “O Nordeste concentra a maior parte dos subnutridos do país (…). Mas é falso imaginar que todo o Nordeste passa fome”, registrava o texto.

Hoje, a desnutrição, nem de longe extinta no país, disputa atenção com um novo problema alimentar: o sobrepeso. A melhora no poder aquisitivo das classes C, D e E ocorrida na última década fez com que essa população passasse a comer mais — só que mal. Em 2013, de acordo com os dados do Ministério da Saúde, pela primeira vez o índice de brasileiros acima do peso ultrapassou os 50%. Há um novo paradoxo na questão alimentar do Brasil.

Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592

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