O glamour que vem da cozinha
A transformação de metrópoles brasileiras em polos culinários internacionais levou à “santificação dos chefs” e fez crescer busca por cursos de gastronomia

A cidade de São Paulo converteu-se nas últimas décadas em epicentro da gastronomia brasileira e vértice de sua difusão internacional, com restaurantes de qualidade que seguem variadas linhas de cozinhas modernas, escolas profissionalizantes repletas de alunos, legiões de jovens interessados na arte do forno e fogão e um mercado de tamanho a perder de vista. Mas o ponto de partida desse fenômeno foi o Rio de Janeiro — só depois ele se transferiu para São Paulo.
Entre o segundo semestre de 1979 e o início de 1980, desembarcaram em terras cariocas os chefs franceses Claude Troisgros e Laurent Suaudeau, ambos com sólida formação e experiência em restaurantes estrelados. No Rio, eles lançaram os fundamentos de uma cozinha que emprega técnicas modernas, explora produtos nacionais ou de procedência forasteira e resulta em pratos que despertam forte admiração.
Claude e Laurent vieram para trabalhar em restaurantes de hotel. Curiosamente, mal se conheciam. Entretanto, acabaram amigos e parceiros de inovação. Claude, além de cozinhar, apresenta hoje o programa de televisão Que Marravilha!, no GNT. É filho do renomado chef francês Pierre Troisgros, que juntamente com o irmão Jean contribuiu para lançar, em 1972, a nouvelle cuisine, reação às preparações complicadas e às vezes indigestas da cozinha tradicional. Sua família ficou em Roanne, na França, onde possui um restaurante contemplado desde 1968 com as três estrelas do Guia Michelin.
O filho talentoso aterrissou no Rio de Janeiro em agosto de 1979 para trabalhar no Le Pré Catalan, do antigo Hotel Rio Palace, a seguir Sofitel, em Copacabana. Ele até ameaçou deixar a cidade — em 1986 abriu o paulistano Roanne, no bairro do Jardim Paulista —, porém mudou de ideia, até porque havia se tornado o mais carioca dos franceses. Já chegou sócio do Flamengo, ao comprar no próprio desembarque, ou seja, no aeroporto, o título do clube que pertencia a um conterrâneo de regresso à pátria.
Sob a influência da nouvelle cuisine, surgiram pratos com ingredientes nacionais ainda
não reconhecidos entre nós
Laurent foi enviado ao Brasil pelo célebre chef Paul Bocuse (1926-2018), também um dos criadores da nouvelle cuisine. Veio assumir a cozinha do Le Saint-Honoré, do hotel Le Méridien, no Leme, no começo de 1980. Saiu dali para abrir restaurante próprio em Botafogo e, em 1991, transferiu-se para São Paulo.
Os dois chefs, naturalmente influenciados pela nouvelle cuisine, com suas receitas mais leves e porções menores, apresentadas de maneira refinada e decorativa, criaram as bases de uma cozinha brasileira inovadora, logo admirada e seguida no país. Aplicavam a técnica francesa que haviam assimilado e dominavam como poucos, contudo resgatavam ingredientes brasileiros cuja nobreza ainda não era reconhecida entre nós. Ninguém se atrevia a utilizar produtos típicos da terra na alta cozinha.
Claude apostou em receitas com toques tupiniquins, admiradas pela execução primorosa, pelo sabor e pela apresentação. Maracujá, caju, goiaba, jiló, jabuticaba, açaí, enfim, frutas para ele exóticas atraíram sua atenção. Laurent fez o mesmo. Entre suas melhores criações, destacam-se o nhoque de milho verde com creme parmesão, o purê de mandioquinha, o pato com molho de mel, tucupi e sementes de coentro.
Começou então a aterrissagem francesa em São Paulo. É verdade que na mesma época da chegada ao Brasil de Claude e Laurent, o La Cuisine du Soleil, do Hotel Maksoud, na Bela Vista, já trouxera o chef francês Hubert Keller para inaugurar sua cozinha. Ele fez um trabalho de fusão semelhante ao dos conterrâneos no Rio, todavia ficou pouco tempo no país.
Depois disso, um cozinheiro belga incorporou-se ao movimento. Chamava-se Quentin de Saint-Maur e abriu o L’Arnaque, no bairro de Cerqueira César. Explorou igualmente os ingredientes nacionais e, a fim de garantir o abastecimento de produtos tradicionais da culinária francesa, incentivou ou iniciou no interior paulista o cultivo de endívia e de cogumelos e a criação de patos para magret e foie gras.
A seleção do primeiro time paulistano ainda incluiu craques como os chefs Emmanuel Bassoleil, a quem Claude Troisgros transferiu o Roanne, Erick Jacquin, que veio para o Le Coq Hardy e se tornou astro do reality show MasterChef, levado ao ar no Brasil pela Band, Alex Atala (D.O.M.), Bella Masano (Amadeus), Carla Pernambuco (Carlota), Helena Rizzo (Maní), Leila Kuczynski (Arábia), Mara Salles (Tordesilhas), Morena Leite (Capim Santo), Paulo Barros (Moma), Renata Braune (produção do MasterChef), Rodrigo Oliveira (Mocotó), Salvatore Loi (Moma), Sergio Arno (do antigo La Vecchia Cucina), Silvia Percussi (Vinheria Percussi) e Luciano Boseggia (Verbena), entre outros.
A essa altura, consolidou-se o fenômeno que o restaurateur ítalo-paulistano Massimo Ferrari denominou “santificação do chef”. Os grandes restaurantes passaram a ter na cozinha um profissional de rosto exposto, aquele que vai ao salão discutir pedidos ou conversar com as pessoas, frequenta a mídia — e não mais o migrante nordestino que trabalhava no anonimato. Alguns viraram celebridades.
A qualificação da cozinha brasileira passou pelos cursos superiores de gastronomia, que começaram a atrair jovens da classe média. Há no país 169 dessas escolas profissionalizantes, dezessete públicas e 152 privadas. O último levantamento oficial, patrocinado pelo Ministério da Educação, usou dados de 2016. Estavam matriculados nos cursos superiores de gastronomia 27 724 alunos. O primeiro surgiu em 1999, na Universidade Anhembi Morumbi (UAM), inspirado no The Culinary Institute of America (CIA), de Nova York, um dos melhores do planeta. Atualmente, pertence à principal rede privada de educação do mundo, a Laureate International Universities, dos EUA. Só em São Paulo são 1 000 alunos matriculados em gastronomia.
A TV também fez a sua parte, convertendo o cozinheiro em celebridade. Produzem-se no Brasil centenas de programas de culinária. Só no canal GNT há quinze. A gastronomia chegou às bancas de jornais, por meio de revistas especializadas, e alcançou as livrarias, que vendem uma centena de novos títulos por ano. O mesmo se deu no cinema. Há um ilustrativo documentário de 2013, por exemplo, sobre os motivos que levaram os chefs franceses a deixar seu país e a família para tentar a sorte no Brasil. Intitula-se Por que Você Partiu?.
O contraponto do boom gastronômico se encontra paradoxalmente nos cursos superiores, nos quais a média de evasão passa de 50%, contra os 20% registrados nas universidades em geral. O duro dia a dia na cozinha, com a descoberta de que será necessário passar dez horas em pé junto ao fogão e receber de salário inicial cerca de 3 000 reais por mês, desestimula os aspirantes ao toque blanche com menor disposição. Para uma infinidade deles, no entanto, o sonho continua. Afinal, ser cozinheiro é glamouroso.
* J.A. Dias Lopes é jornalista, diretor de redação da revista Gosto e tem um blog sobre gastronomia no site de VEJA
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592