O lugar é aconchegante, amplo, banhado de luz natural e cercado de árvores. As seis suítes de quase 30 metros quadrados são equipadas com ar-condicionado. A varanda parece beijar a natureza. O ambiente remete a um luxuoso hotel cinco-estrelas. Um segundo olhar, mais atento, faz aparecer a cama regulável, como a de hospitais, a escada de madeira para alongamento, uma bola para exercícios — além do bercinho de acrílico transparente e da poltrona convidativa.
Bem-vindo às instalações do Centro de Parto Normal Marieta de Souza Pereira, localizado no bairro periférico de Pau da Lima, em Salvador, na Bahia. Além dos serviços de hospedagem, o endereço oferece a cada mãe uma doula, uma enfermeira obstétrica e apoio de pelo menos um dos dez médicos obstetras plantonistas do local. “Certa vez, um agente de saúde nos perguntou se queríamos imitar uma rede hoteleira, e eu respondi: ‘Por que não?’”, diz o baiano José Carlos Gaspar. “Pobre não merece atendimento de qualidade?”
Gaspar, graduado pela Universidade Federal da Bahia e membro da Associação de Obstetrícia e Ginecologia da Bahia, é o único médico obstetra voluntário do centro. Está lá há sete anos, desde o princípio da ideia. Trabalha pelo menos dez horas por dia e tem a grandeza de perceber que, ao praticar o bem, ajuda a si mesmo. “O voluntariado é mais importante para quem o pratica do que o contrário. Eu precisava disso”, diz. Há treze anos, ele perdeu a filha, Fernanda, então com 23 anos, em decorrência de um choque anafilático. “Sou muito feliz pela minha família e pelos dois filhos que tive. Nanda infelizmente se foi cedo. E agora ajudo outras pessoas a chegar a este mundo”, afirma. Calmo, paciente, o que não o impede de ser falante, Gaspar abraçou o projeto como a um rebento. Ele hoje é coordenador-geral do Centro de Parto, instalado dentro da Mansão do Caminho — obra assistencial idealizada pelo filantropo e médium Divaldo Pereira Franco, figura querida na sincrética Bahia de todos os credos. Com atendimento gratuito, via Sistema Único de Saúde, o SUS, a instalação coordenada por Gaspar é referência internacional, elogiadíssima, em modelo de assistência à mulher. Já foi tema de diversos trabalhos acadêmicos pelo mundo. “Só em 2016 recebemos três grupos de médicos estrangeiros que pediram a planta do local e analisaram todo o atendimento que prestamos”, relembra.
“Perguntaram se queríamos imitar uma rede hoteleira, e respondi: ‘Pobre não merece qualidade?’”
Gaspar é um zelador de boas condutas, a quem coube ouvir os moradores das cercanias e apresentar o programa para as autoridades municipais e estaduais de saúde — enfim, foi ele quem fez a coisa toda acontecer. Com rigor e com uma ideia subjacente: o cuidado com as mulheres que buscam o parto natural. A intenção sempre foi reduzir ao máximo o número de intervenções no corpo da futura mãe, respeitando o tempo necessário para que a criança venha ao mundo. O índice de episiotomia (incisão efetuada na região do períneo para ampliar o canal de parto) ali é um dos menores do Brasil: 0,12 % — de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), toda maternidade que tiver de 10% a 15 % de episiotomia deve rever suas práticas. “Quanto menos fazemos, mais entendemos como o corpo da mulher é sábio e adaptável”, diz Gaspar, que não recusa intervenção em casos de extrema necessidade. “Tudo é muito bem avaliado e conversado com a parturiente.” É postura atenciosa que, no início, produziu alguma resistência entre as mães de primeira viagem. “Descobrimos que as mulheres não queriam ter filhos aqui porque não cortávamos nem colocávamos hormônio endovenoso para facilitar o parto. Tivemos de voltar à comunidade e explicar que, se fosse preciso, faríamos, mas não como regra.” No local, há sempre uma ambulância totalmente equipada para transporte da paciente em menos de quinze minutos para o hospital Albert Sabin, da rede pública, no caso de situações de risco ou emergência. “Mas o porcentual de transferência é, no máximo, de 4% a 6%”, diz Gaspar.
O Centro de Parto Normal de Salvador é uma vitória num país com um dos maiores índices de cesáreas do mundo — nos hospitais privados é de 80% e na saúde pública, 40%. A OMS define como aceitáveis porcentagens em torno de 15% — índice alcançado por Holanda e Finlândia, por exemplo. As protagonistas, as mães, escolhem a posição (em pé, sentada, no chuveiro…) com que desejam trazer os filhos ao mundo. Sempre acompanhadas do carinho de Gaspar. “Certa vez uma mãe quis ter a criança embaixo de um pé de manga, olhando para o céu, ao ar livre, e assim aconteceu. As funcionárias correram para lá, e ela teve toda a assistência necessária”, diverte-se. As grávidas participam de sessões de ioga, roda de gestante, roda do marido (para o companheiro entender o nascimento e tirar dúvidas), chá da vovó (orientação de aleitamento para a mãe da mãe ou a sogra), entre outras atividades. Ali, em apenas sete anos, já aconteceram 4 000 nascimentos, além de 5 000 consultas de pré-natal e cerca de 10 000 atendimentos anuais voltados para gestantes.
A estatística volumosa atraiu prêmios e respeito. O Centro de Parto Natural foi reconhecido pelo Ministério da Saúde como “amigo da criança”, referência de assistência ao aleitamento materno. Também recebeu o Prêmio Doutor Pinotti como “hospital amigo da mulher”, concedido pela Câmara dos Deputados, em reconhecimento aos trabalhos e ações pela universalização do acesso e qualificação dos serviços de saúde da mulher. A Organização Pan-Americana da Saúde o tem na lista de excelência em assistência ao parto e nascimento no Brasil. Gaspar ri, modestamente, emocionado, lembrando-se da filha. Ela certamente se orgulharia do pai, que acompanha crianças nascerem naturalmente.
Na próxima edição, conheça a história de mais um finalista do Prêmio VEJA-se, na categoria Saúde. A premiação prestigia cidadãos que se destacam como agentes de mudança na sociedade brasileira
Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2018, edição nº 2599