Único romance de Boris Pasternak (1890-1960), Doutor Jivago, que acaba de ganhar nova tradução em português, era, há meio século, uma obra conhecidíssima mesmo pelos que não a leram. E isso por duas razões: o escândalo político que envolveu tanto sua publicação, em 1957, quanto a concessão quase imediata do Prêmio Nobel de Literatura a seu autor, em 1958; e a adaptação cinematográfica de 1965, dirigida pelo inglês David Lean, que recebeu cinco Oscar. O filme, um melodrama que poderia ser resumido como “e o vento levou a Revolução Russa”, foi um sucesso de público e consagrou o Tema de Lara, da trilha sonora de Maurice Jarre.
O livro de Pasternak tem muito dessas narrativas panorâmicas do apogeu do realismo que, como as principais obras de Tolstoi e Dostoievski, buscam tanto detalhar o que ocorre com seus personagens (meia centena, neste caso) quanto expor o panorama maior, a história de um país e de uma época. Nesse gênero de romance, os planos pessoal e histórico se interpenetram e se emaranham; nas melhores obras, examina-se como os indivíduos cuja vida é atropelada pela história tentam impedir que esta determine totalmente o desenrolar de suas existências. Esse é o caso de Iúri Jivago, um médico e poeta russo oriundo da alta classe média e membro da elite intelectual de seu país, cujos anos de formação transcorrem na década e meia que antecede a I Guerra Mundial. Sua juventude, maturidade e sina são marcadas pela Revolução Russa, seguida pela Guerra Civil (1918-21) e pelo recrudescimento do autoritarismo. Boris Leonidovitch Pasternak era ele mesmo um poeta, um dos maiores entre os russos modernos, membro destacado da maior geração poética de seu país no século passado, e reconhecido por seus conterrâneos antes de mais nada por sua produção lírica. Como Fernando Pessoa, que, especialmente nos países de língua inglesa, só se tornou famoso com a tradução de sua obra em prosa, O Livro do Desassossego, o russo também só se celebrizou no estrangeiro com a publicação de seu romance.
O reconhecimento precoce como poeta foi uma das razões pelas quais Pasternak sobreviveu aos piores anos do comunismo e à tirania stalinista, que vitimou muitos de seus amigos e contemporâneos, sem ter de sujeitar sua lira à propaganda político-ideológica. Nem por isso ele escapou inteiramente incólume: dos anos 30 à década de 50, mal pôde publicar a própria produção, e viveu de seu trabalho de tradutor — verteu para o russo, entre outros clássicos, obras de Shakespeare e o Fausto de Goethe. O escândalo que envolveu Doutor Jivago estourou em 1957, quando o romance saiu inicialmente não em russo nem no seu país de origem, a então União Soviética, mas em tradução italiana. O manuscrito, sem censura, foi contrabandeado para o exterior graças ao empenho de um comunista italiano; o editor também era comunista fiel, mas resolveu desafiar seus correligionários da “pátria do socialismo”, promovendo a rápida publicação do romance. Outras traduções sairiam no ano seguinte, bem como edições em russo tanto na Itália quanto nos Estados Unidos.
Para ser publicada em sua pátria, a obra precisou esperar três décadas e a abertura política que ficou conhecida como glasnost. Pasternak passou os dez anos que sucederam à II Guerra Mundial escrevendo o romance, e tinha esperança no chamado “degelo” — um relaxamento da repressão estatal — que se seguiu à morte de Stalin, em 1953. Esperança frustrada: o livro foi proibido pela censura. Quando entregou o manuscrito ao italiano que o contrabandearia para fora do país, Pasternak lhe disse: “Por meio disto, eu o convido para me ver diante do pelotão de fuzilamento”. Não chegou a tanto, mas Doutor Jivago trouxe problemas a seu autor.
Com a Guerra Fria no auge, mesmo uma obra que não era exatamente crítica do regime, mas que ousava falar do passado recente sem se dobrar às convenções literárias oficiais e sem repetir slogans, era vista como um ato de dissidência. Jogando mais lenha na fogueira, consta que os serviços ocidentais de inteligência, particularmente o americano, teriam colaborado na divulgação de Doutor Jivago. A situação atingiu o paroxismo com a concessão do Prêmio Nobel de Literatura a Pasternak, o que desencadeou uma campanha contra o autor dentro da União Soviética. Ele foi vilipendiado na imprensa oficial e expulso da União dos Escritores, o que representava o potencial corte de todas as suas fontes de renda. Para evitar o exílio, o poeta se viu obrigado a desistir do Nobel. Morreu um ano e meio depois, e o prêmio foi finalmente entregue a seu filho trinta anos mais tarde, já na glasnost.
Tudo isso é história antiga, quase tão remota para muitos possíveis leitores quanto a era czarista na qual os antecessores imediatos de Pasternak escreveram as obras que levaram a prosa russa a seu primeiro apogeu. Condizentemente, não será automático perceber, durante a leitura, como a construção de tal ou qual personagem, como a narrativa deste ou daquele evento, ou como até mesmo a forma das frases e a escolha de palavras se insurgiam contra um dos sistemas mais opressivos de que se tem notícia. Isso requer muita leitura e informação complementar. Nem por isso o romance se reduz aos desencontros de dois amantes infelizes no meio de guerras e revoluções. A obra, afinal, é a prosa de um poeta. Funciona também como a montagem de um grande número de fragmentos, algo que lembra de certa forma O Livro do Desassossego. Iúri Jivago, o protagonista, tem muito do autor. É um poeta ficcional que se torna uma das extensões de seu criador — enfim, aquilo que Fernando Pessoa também criou e chamou de heterônimo. Ademais, esse poeta russo quase real escreveu um conjunto de poemas que figuram como apêndice do romance. Os Poemas de Iúri Jivago complementam a história e dão mais dimensões ao personagem. Assim, Doutor Jivago, um romance em parte criado contra seu tempo e que desde então tem sido lido sobretudo como um protesto, consegue também se colocar acima do imediato, conquistando a atemporalidade da grande literatura.
Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2018, edição nº 2567