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Do crime para a sala de aula

Adalberto Marques, finalista do Prêmio Veja-se na categoria Educação, montou um currículo na medida para adolescentes de um centro de menores infratores

Por Maria Clara Vieira Atualizado em 30 nov 2018, 20h39 - Publicado em 24 ago 2018, 07h00

Com 5 427 homicídios em 2017, Pernambuco é o terceiro estado mais violento do Brasil, perdendo apenas para o Acre e o Rio Grande do Norte. Reflexo dessa estatística macabra, 1 449 meninos e meninas abaixo dos 21 anos lotam as instituições encarregadas de fazer cumprir as decisões judiciais relativas aos menores infratores e, ao mesmo tempo, assegurar que sigam na escola (quase metade deles está no ensino fundamental). No conjunto dessas instituições, o regime mais rigoroso encontra-se nos nove Centros Sociais de Atendimento Socioeducativo (Cases), onde vivem internados os adolescentes sentenciados à privação de liberdade. Pois é justamente no Case de Jaboatão dos Guararapes, município de 695 000 habitantes a 20 quilômetros do Recife, que menores envolvidos em crimes graves têm a raríssima chance de sair melhores do que quando entraram, graças ao trabalho de Adalberto Teles Marques, um professor de matemática que enxergou claramente o poder transformador do ensino. Por isso, Marques é finalista do Prêmio Veja-se na categoria Educação.

No Centro Social de Jaboatão, vinculado à escola municipal Frei Jaboatão, a média de frequência nas aulas é de 84%, contra 53% nas outras unidades. As salas têm, no máximo, dez alunos. Há vagas para 72 menores, mas só 65 são ocupadas, para não sobrecarregar a estrutura. Em vez de celas, os meninos habitam pequenas casas coloridas nos fundos do terreno, das quais eles mesmos cuidam. A revolução que fez da experiência de Jaboatão uma referência na área socioeducativa começou em 2013, com a chegada de Marques, 54 anos, professor de origem humilde, filho de militar e dona de casa, que, além da graduação em matemática, tem mestrado e doutorado em psicologia cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco.

O próprio Marques, chamado por todos de Beto, conta, em tom de piada, que o gosto pelos estudos vem de um trauma de infância: quando ele tinha 11 anos, a coleguinha por quem suspirava não quis ser sua namorada porque o achava “pequenininho, feio e pobre”. Uma professora, para consolá-lo, disse que, se estudasse muito, ele conseguiria atingir qualquer objetivo. “Aí resolvi ser o melhor da classe”, lembra. Decidiu trabalhar e acabou dando aulas particulares de matemática e inglês — idioma que aprendeu sozinho, impulsionado pelas canções dos Beatles.

A opção pela matemática aconteceu meio por acaso. “Depois de descartar os cursos que eu não queria, esse foi o que me pareceu mais promissor”, explica Marques. Uma vez diplomado, ele passou uma década no Recife, acumulando dois empregos e mergulhado na especialização em psicologia. A atração pelo trabalho com adolescentes vem dessa época e foi despertada por um grupo de hip-­hop que ele costumava ver apresentando-se na rua. “Eu dava aulas e sabia quanto é difícil prender a atenção dessa turma. A paixão com que aqueles jovens se reuniam para dançar me deixou intrigado. Quis conhecer melhor esse universo”, diz Marques.

O trabalho no Case de Jaboatão veio em seguida. “Quando cheguei aqui, em 2013, a escola era rígida, quase um sistema militar. Os alunos entravam enfileirados, tinham de cantar dois hinos, eram ameaçados e chamados de bandidos”, recorda-se o coordenador Valter Carneiro. Contratado junto com Marques, ele ouviu as ideias do colega e lhe deu carta branca. “A maior contribuição que o Beto nos trouxe foi a pedagogia do afeto. Com seus conhecimentos em educação e psicologia, ele refez o projeto pedagógico da escola.”

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Marques sempre teve cargo de professor no Centro Social de Jaboatão, mas de sua caneta saiu o currículo que reestruturou o ensino dos internos. Os alunos frequentam a escola das 7h30 às 12 horas e, à tarde, participam de oficinas de robótica, capoeira e pintura, entre outras atividades, todas acompanhadas por professores das disciplinas regulares, que estimulam a interatividade. Assim, nas aulas de corte e costura (sim, elas existem, e os meninos se divertem — Marques possui várias toalhas bordadas por eles), aproveita-se para ensinar sobre a roupa usada nos tempos do Império. Nas de futebol, contam-se os passes para aplicar fórmulas matemáticas. Os estudantes também participam de ciclos de leitura, têm aulas de Lego e produzem, cada um, uma autobiografia com textos e fotos, refletindo sobre sua trajetória de vida.

Colega de Marques ao longo do processo de transformação do centro social, a professora de alfabetização (muitos internos chegam ao local sem saber ler) Marguerite Barros testemunhou de perto as mudanças. “A maioria dos nossos alunos entrou aqui desinteressada pela escola e atraída pelo retorno fácil ao crime. Precisávamos oferecer um ensino diferenciado, e o Beto soube fazer isso, porque ele fala a linguagem do jovem”, elogia ela.

Neste ano, Marques começou a dar oficinas de empreendedorismo aos detentos, nas quais aproveita todo e qualquer conhecimento prévio dos garotos, “mesmo os escusos”. “Se o menino estava envolvido com tráfico de drogas, digo-lhe que vamos usar a capacidade de gestão e de negócios que adquiriu em objetivos mais saudáveis”, explica. Junto com a atividade em Jaboatão, ele acumula atualmente o cargo de professor-formador na Secretaria de Educação de Pernambuco, leciona em universidade e viaja Brasil afora proferindo palestras sobre sua experiência. Após tantos anos ensinando menores infratores, Marques ainda fala de seu trabalho com emoção: “Eu queria não me importar tanto, sabe? Queria mesmo. Sinto um desespero absurdo quando vejo um menino na cadeia”. Seu maior sonho? Que as salas de aula do Centro Social de Jaboatão um dia fiquem totalmente vazias.

Publicado em VEJA de 29 de agosto de 2018, edição nº 2597

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